capítulo 2

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Texto 02: Me Morda
Data: 24 de novembro de 2019

''Me morda'' eu quase imploro. Essas palavras ficam a beira de escapar pelos meus lábios. Vez ou outra me ocorre uma fixação oral, uma espécie de desejo muito forte de ocupar meus lábios com palavras que me esforço a segurar. Vontade de ocupar minha boca com beijos demorados em outros lábios, no pescoço, pelas coxas e por onde mais eu conseguir esfregar os lábios e a língua, para finalizar em um beijo. Meus lábios quase ardiam nesses instantes, um beijo ardente e escarlate, de encontro a uma superfície que eu tento derreter com a boca.

Nós estamos sentados num galho de árvore. Em uma árvore numa praça, quase um pequeno parque. Uma área verde no meio de ruas, estradas, quarteirões, lotados de casas e lojas que apenas vemos pela janela de ônibus mas não nos importamos se há alguém. Hoje, sentados aqui, cada olhar torto pode nos importar.

No entanto estou aqui. Longe de ser um herói ou alguém que você lembra ao precisar de ajuda. Porém quero ser aquele que faz parecer certo quando as coisas dão errado, quero ser alguém que o inspire esperança quando ele já abandonou as suas a sorte. Merecer sua confiança, ser teu porto seguro como se fosse a melhor coisa que eu possa fazer. Eu só quero parecer ser a pessoa certa, o encontro que vale a pena, a aposta certa a se fazer. Dou um beijo na moeda, jogue-a agora.

...

Nós vemos casais daqui, um deles tentava entalhar suas iniciais dentro de um coração no casco de uma árvore, quanto tempo será que eles ficariam juntos? Outro casal sentado em um banco de concreto, nós apostávamos há quantas semanas aqueles que se chamavam de "amor" estavam juntos. Não é que não sejamos românticos, talvez sejamos tão fracassados no amor mas com certeza é por nos segurar tanto com medo de qualquer passo em falso. Estamos falando de entregar o coração. E para alguém que tem o coração em pedaços feito eu, fica difícil encontrar jeito de colocá-lo a disposição de alguém. Ainda assim quando nos seguramos tanto, será que é como segurar um espirro e correr o risco de quebrar alguns ossos?

Era um dia quase nublado mas ainda quente, dias assim precisam de motivos para serem bons. Ele disse que tem saudades, eu quase corro para digitar "senti saudades também", porquê primeiro vem o sentimento e depois o "também". Porém não me rendo, palavras tem poder e se ele usá-las contra mim? "Vamos sair depois do almoço", o chamar para sair é meu jeito de dizer: "estou com saudades e você foi bonzinho suficiente para me fazer encarar seu rostinho lindo". Sou um homem fácil, só que um magoado irredutível que carrega desconfiança por aí.

...

Então abro os olhos. Não sei se cochilei deitado sobre a sua coxa ou se por alguns minutos, estive pensando em algum poema. Tem um abajur iluminando de azul o quarto onde as lâmpadas estão apagadas. Não se mexa, é uma cama de motel, odeio esses colchões com cobertura de plástico. Prefiro encarar o silêncio e imaginar que cada vez que meus dedos vem e vão nas suas pernas, tem o som de um dedilhar em alguma harpa angelical.

Sou um homem de metáforas. Agora, eu diria que sou um astronauta, deitado em alguma rocha lunar. O silêncio, a distância de casa, o frio e seus pensamentos que parecem qualquer sinal de rádio que tento captar. Se me permite mais outra para complementar, sua pele é feito poeira lunar, fina e fácil de escorregar, como açúcar, eu escorregaria para dentro dele novamente.

E mais outra vez, nessa não tão carnal. Eu seria espectador, ficaria o observando e até encararia seu falatório sobre coisas que não conheço mas presto atenção suficiente para parecer interessado. Me sinto o Dr. Manhattan de Watchmen, num quadro que está sozinho em Marte. Veja bem, sou um alguém que não se coloca em primeiro. Um dos meus melhores momentos do dia, era sentar na calçada com minha avó e observar o trânsito de pessoas e carros, tão distraído, quase pedindo para ser levado de mim. Me empenho por todos e quase nada por mim, tenho raras exceções a regra mas ainda sim, não sou meu assunto ou prioridade favorita. Estou lhe dando corda, para que me amarre ao seu quadril. Só tenha cuidado, minha língua tão quente também pode dissolver isso.

...

Descemos, entregamos a chave a recepcionista. Eu queria entregar a chave do meu quarto para ele. Contudo, meu quarto teria que ser um portal no tempo-espaço para isso. Lembro dos casais na praça de hoje mais cedo. A menos que sejam amantes ou um deles visado pela família ou no bairro do outro, será que tinham problema de ir em casa? Não precisar largar as mãos dadas ou notar se alguém conhecido os viu? Eles mal sabem o quanto são privilegiados por isso, não ter medo de demonstrar o tanto de carinho que tem pelo outro.

Embarcamos no ônibus, sentamos próximos. Para onde estamos indo? Além dos mapas, digo, onde queremos chegar? Não posso lhe pedir nada além de responsabilidade afetiva e moedas para comprar jujubas. Na cama, ele pediu como se em cada pedido estivesse meu nome a realizá-los, estritamente eu a fazer por ele. Talvez confie em mim, o que me deixa muito lisonjeado. Porém só não quero duas coisas: 1) ser um fardo, que minha ansiedade insiste em jogar contra seu peito e 2) que ele se esqueça, que lembrar dele me vem acompanhado de estremecer os lábios dizendo ''me morda''.

É o mais perto que me permito de dizer "me devora", "arranca um pedaço meu e leva contigo". Seus cabelos ficaram na minha blusa, achei tão romântico, para despistar é só dizer que deitou na minha barriga. Não estou dando voltas com isso, mas qual o mal de podermos dar voltas juntos por aí, confiando que seríamos boa companhia?

Não Me MagoarOnde histórias criam vida. Descubra agora