Capítulo 16

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O carro vermelho estacionou na calçada às 17h em ponto, algo que me surpreendia sempre quando se tratava da família da Julia.
- Oi - eu o abracei assim que me sentei ao seu lado. Tinha cheiro de banho recém-tomado. Eu adorava como seus fios ficavam arrumados daquela forma, meio anos 90, brilhantes. Lembrava o Will Smith em O Maluco no Pedaço e era completamente distante das pessoas de cabeças praticamente iguais da escola.
- Oi - ele deu partida no carro com um sorriso diminuto. Assim que saímos do condomínio, apontou o esportivo dentro do retrovisor. – Não estamos sozinhos. Mário agora tem que me acompanhar – suspirou. - Mas ele prometeu manter uma boa distância.
Estiquei a bochecha em um sorriso nervoso, tanto pela confusão sobre o que fazer agora, quanto pela necessidade de termos um segurança. A voz chata de Bruno me lembrou dos perigos em volta da presença de Flávio, mais evidentes após o acidente.
- Aonde vamos, Luiza? Você que manda.
- Hã, pois é. Eu não posso demorar. Não avisei que ia sair - lembrei, com medo de ter problemas com a tia psicótica ou de ela nos ver.
- Hum, então vamos à orla.
Ele fez uma curva para a rua que nos levaria à orla, andando vagarosamente enquanto um sol fraco iluminava o vidro do carro, preguiçoso, tomando minutos a mais para chegar ao rio, aproveitando todos os sinais vermelhos com tranquilidade. Paramos, como já era de se esperar, na barraca mais bonita e arrumada perto da água, na via movimentada. Havia corredores nas calçadas largas e compridas, crianças brincando no parquinho em cima da areia e alguns casais sentados nos bancos de frente para o rio, outros encostados às barraquinhas de coco, refrescando-se do calor corriqueiro. Gioto era como Belém, só tem dois climas: um infernal e outro chuvoso; às vezes, conseguia disponibilizar ambos em um mesmo dia, sem se preocupar em ser coerente. Dali, de onde a vista espetacular nos saudava, havia um sol forte mesmo em fim de tarde, embora pudesse chover no período da noite.
Uma viatura de polícia também se prostrava logo ali, do outro lado da rua. Era seguro, pensei, o Mário não precisava vir com a gente. Quem sabe foi por isso que o segurança não saiu do carro, apenas estacionou ao lado da VT e permaneceu com os vidros fechados. Flávio acompanhou meu olhar e sorriu com desculpas.
- Essa luz tá ótima. Deixa eu tirar uma foto sua aqui – chamou minha atenção, puxando o celular do bolso. Apontou a câmera na minha direção, calando meus protestos por estar desarrumada ou qualquer outra besteira que dizemos em momentos assim. A foto mostrou uma garota morena, de pele acobreada e olhos moldados por maçãs de rosto altas e avermelhadas de embaraço. Atrás dela, um local iluminado e cheio de vida, com árvores chacoalhadas de vento e pessoas caminhando, vencia de lavada do afastado O Mariscão, para onde Bruno me levara na última vez.
- Gostei. Me manda ela depois.
Essa comparação somou mais pontos ao rapaz ao meu lado, que vez ou outra acenava com a cabeça para pessoas que sorriam para ele, reconhecendo-o da tevê. Nesses olhares, alguns passavam por mim com curiosidade ou até mesmo reconhecimento. Uma amiga de tia Elisa, que passeava com dois filhos e um cachorro, sorriu para nós e fez um "joinha" para Flávio, congratulando-o pelo desempenho no GSP.
- Já sei sobre o que você quer conversar – esperou tomarmos metade da água de coco para dizer, parecendo embaraçado quando nos sentamos num banco vazio diante da água, o mais afastado da via. - Sua tia me ligou ontem.
- Me desculpa por isso - pedi, sugando o doce pelo canudo. - Ela achou que eu tivesse colocado na minha bolsa por engano, mas não fui eu que fiz isso, e... Parando pra pensar agora, me lembrei de uma coisa estranha. Quando entrei no quarto da Julia, ele estava todo bagunçado. Como se alguém tivesse procurado o objeto, sabes?
Flávio uniu as sobrancelhas. Preciso dizer que ele ficava um deus quando confuso.
- Você acha que alguém colocaria o colar na sua bolsa de propósito?
- Mas quem faria isso? E por quê?
Sua demora para responder me deu o que pensar. Por um momento, pensei nas pessoas que eu odiava e que, de algum modo, tentariam me prejudicar. Duas vieram à mente, quase de imediato; ambas amigas de Flávio e suspensas devido à briga em que se meteram. Apesar de estar com Guilherme e Melissa na boca, o fato de eles serem próximos ao rapaz não me deixaram falar nada. Soube, ali, que Julia seria uma investigadora mais esperta do que o primo, menos imparcial e, quem sabe, até mais confiável.
- Verdade. Quem poderia querer entregar isso para a sua tia? – Flávio perguntou por fim, dando mais motivos para rememorar a noite.
Julia, Flávio, Carolina, Guilherme, os empregados da noite, Rafael, Ricardo e eu éramos os únicos a sabermos que estive usando o colar no sábado. Quem deles poderia guardar a joia em minhas coisas, de modo a dar a tia Elisa um motivo para se indispor com meus modos?
- Sei lá, Flávio. Vai ver eu acabei guardando ela na bolsa, cheguei meio tonta daquele lance do restaurante – concluí, mais para mudar a pauta do que por conformidade. – Só sei que ela precisa que eu conte ao meu pai que você me deu o colar, ou ela fará isso.
- Queria tocar no assunto ontem à noite, quando a Julia te ligou pra gente dar uma volta - explicou, mexendo na pulseira de seu relógio de ouro no pulso. - Isso te trouxe algum problema?
- Ainda não – fiquei da cor de minha roupa, pois teria de explicar meus motivos e eles eram bem infantis. – Mas acho que o meu pai não vai entender direito o que aconteceu.
Até porque eu não poderia dizer que estávamos muito bêbados quando pedi o colar e o rapaz concordou, com seu próprio nível alcoólico comandando as atitudes.
- Então diz que eu quis te dar e pronto. Não tem problema pra mim - sorriu de um jeito inocente, que fez meu coração acelerar.
- Mas... É... Quando eu disser pra ele, sabe... É muito caro pra um amigo dar.
Ele me encarou com a expressão menos segura.
- É um problema ele saber que não somos só amigos.
Não foi uma pergunta.
- Não é isso, é só que eu fico...Eu fico assustada com o que meu pai pode pensar, porque... Ele não compreenderia essa coisa direito.
Lê-se coisa como a relação inominável que mantínhamos. Flávio tomou um gole de sua água de coco lentamente, olhando para as marolas no rio clareado. Daria um rim a quem me contasse quais eram os pensamentos dele naquela hora.
- Entendo. Então você... Quer que a gente seja só amigos?
- Ahn... Sim, se estiver tudo bem - respondi como havia ensaiado durante a tarde, pensando em todas as coisas que haviam ocorrido com Bruno, recentemente.
- Você quer isso por causa do seu pai ou...por outra razão?
Será que ele estava ouvindo meus pensamentos?
- Bom, tem outra coisa... Mas é... – Absorvi o líquido adocicado, tentando ganhar coragem.  – Bom, a minha tia deixou claro que uma mulher que recebe presentes sem um compromisso - fiz uma careta com a palavra - não é digna do sobrenome da nossa família.
Flávio ergueu ainda mais as sobrancelhas, incrédulo.
- Será que o século vinte e um já alcançou o Royal Ville?
- Pelo visto, não.
- Esse é o problema, então?
Não gostaria de parar de ficar com o Flávio, mas sabia que a história levaria nossa família a acreditar que estávamos namorando, e ele também não parecia impelido a algo semelhante no momento. Além disso, a marca em minha virilha era um lembrete diário de que eu só conseguiria namorar alguém de novo se realmente valesse a pena. Considerando o fato de esse rapaz precisar de escolta armada para proteger a própria vida dos inimigos políticos de sua família, tornar-me mais íntima dele seria abrir mão da pouca paz que ainda me restava.
- É, basicamente – amenizei.
- Então eu digo que me senti culpado pelo acidente, seu pai com certeza vai acreditar. Porque é a mais pura verdade.
- Não vou fazer isso contigo – eu ri.
- O máximo que ele pode fazer é rasgar uma nota promissória minha sem que eu saiba.
Comecei a rir mais, surpresa por estar gargalhando com ele. Imaginei nossa conversa sendo rápida e definitiva, mas devo admitir que o presente era melhor que a suposição. Seu olhar foi contemplativo. Aquela borboleta solitária em meu estômago se dividiu em duas, tirando a mais antiga para dançar.
- Você tem um sorriso muito bonito - elogiou, olhando para minha boca – Ótimos dentes.
Os dentes se exibiram. Fiquei ainda mais parecida à cor da camiseta vermelha que havia escolhido, uma antiga que roubei da minha irmã, com a imagem de Malala para me deixar segura nos momentos em que precisava resolver problemas. Combinada com o short jeans e as sandálias Havaianas, achei que fosse ficar confortável o suficiente para ter conversas difíceis, mas só me senti desarrumada diante do olhar impassível do rapaz.
- Minha mãe fazia eu escovar eles umas cinco vezes por dia – ouviu-me dizer, ainda sorrindo. – Teve uma vez que eu fiquei com gengiva sangrando depois de comer todo o chocolate da Páscoa.
- Ela é muito cuidadosa com você e a Luciana?
Como ele se lembrava do nome da minha irmã?
- Costumava ser mais autoritária do que cuidadosa. Tenha medo até de olhar pra ela, ainda mais se estiver aborrecida com a gente. Ela é bem mais enérgica que o meu pai, sabes? Sair contigo de carro me daria uma tarde inteira de interrogatório sobre o que fazes, se bebes, se fumas...
Ele riu, deliciado.
- Então quer dizer que o Caio passou pela mesma coisa?
- Não – respondi com rapidez, pois era um assunto que sempre me incomodaria. – A nossa família conhece o Caio desde criança, então o que a gente teve nunca foi oficializado, ficou no âmbito do subjetivo.
Flávio achou graça da escolha de palavras e relaxou mais, definindo os bíceps ao apoiar cotovelos no banco de pedra. O vento soprou o cheiro da sua camisa para perto.
- Seu pai é bem legal. Ele não esquenta muito a cabeça com nada, não é?
- Não, ele é tranquilo. Minha mãe que é a ciumenta. Quando ela me liga, tenho que contar todo o meu dia. Às vezes até omito algumas coisas pra poder dormir cedo.
- Ah, acho isso bom, ela se preocupa. Queria que meus pais fossem assim. Minha mãe é que nem o seu pai, sabe, ela é tranquila, mas é daquele jeito que não tá nem aí para o que eu vou fazer. Então eu sempre fui muito solto. Só vi ela com ciúme de mim uma vez.
Notei que ele não adicionou nada sobre o pai. Flávio nunca comentava sobre o homem, a não ser para reclamar.
- Ela tem ciúme das namoradas?
Suas bochechas coraram.
- Nunca levei ninguém em casa, Luiza. E eu morei boa parte da minha adolescência com o meu avô, no Maranhão. Esse aí nem ligava pra nada, mesmo.
- Mas já namoraste, não?
Ele hesitou, admirando os pés grandes nos chinelos Adidas.
- Mais ou menos. Passei um tempo com uma menina lá na Espanha, mas nunca oficializamos nada, nem cheguei a apresentar ela pra minha família.
Quis perguntar o nome da garota e o que fez o relacionamento terminar, com vontade de fazer a busca perfeita em todos os perfis de mesmo índice, mais tarde. Mas não era certo, pelo menos por ora.
- E quando foi que a tua mãe sentiu ciúmes de ti?
Ele riu para si mesmo, balançando a cabeça com bom humor.
- Ela não gosta quando eu fico perto da tia Mônica. Elas duas sempre brigavam muito, agora que conseguem conviver, aí a mãe se incomodou nessas férias, disse que eu agrado a tia. Mas eu sou assim – pôs as palmas na altura dos ombros. – Quando eu gosto, quero ficar agradando, tratando bem, como faço com todo mundo. E a tia Mônica é incrível, sempre me recebeu bem, nunca me diferenciou das filhas.
- O que a Julia pensa disso?
- Ela adora, né. Fala que prefere a mãe perto de mim do que dela – ele reprovou a ideia junto comigo. – A Julia só vai saber o que é sentir falta da família quando ficar longe deles.
- Estranho tu dizeres isso. Ela me disse que tu nem tinhas coração há um dia desses, mas acho que ela também não tem um – comecei a rir aos seus olhos arregalados de ultraje. – Por que ela acha isso? Que não tens coração?
- Pois é - ele revirou os olhos. – Não sei, acho que tem a ver com isso que eu te falei... Eu nunca namorei sério e sempre fui muito focado em fazer as coisas seguindo a lógica, mas não é tão ruim assim. Não é sempre assim, na verdade. Eu mudei muito.
- O que não é bem assim?
Seu olhar estava mais intenso com a luz do sol poente, alaranjado. Deve ser interessante ter um olho que muda toda hora, pensei, aguardando a resposta.
- Eu acho que as pessoas precisam passar o tempo com quem faz elas se sentirem bem, mas sem a obrigação de terem compromissos ou pressa. Acho que precisa ser natural, sabe?
- Eu também - concordei, as borboletas acelerando o ritmo dentro de mim.
- Gosto de passar o tempo com você – falou, olhando para minha boca, que mostrava legítima vergonha.
Céus, eu queria beijá-lo. E muito. Até cansar.
- Acho que isso é o que importa, não é?
- É, isso que importa – ele se inclinou para um beijo como se estivesse lendo meus pensamentos, que se esvaziaram em seguida.
Meia hora depois, nossas bocas e mãos se confundiam dentro do carro. Não sabia como tínhamos passado para o banco de trás ou como um "tchau" de despedida à porta da casa de meus tios tinha se transformado em uma situação daquelas, nem como minha camiseta ficou perdida em meio à confusão de pernas e braços.
- Esse carro tem... película boa, né? – Resfoleguei, enquanto ele sumia no meu pescoço de baixo para cima, vindo de algum lugar sob o sutiã (novo, graças a deus).
- A melhor do mercado - encontrou minha boca de novo e calou o "adeus" que eu estava tentando dar desde que tinha estacionado. - Vamo' lá pra casa, Luiza? - Sussurrou pela terceira vez, querendo me levar para o mau caminho.
Sorri com lábios dormentes, abaixo de seu corpo grande e descamisado.
- Não hoje – ele me beijou de novo. Era difícil resistir ao seu toque, considerando que ele era a única pessoa que me dava esse tipo de atenção sem compromisso. Nós dois gostávamos de ficar juntos e pronto, não tinha o que pensar sobre o assunto - e não pensar era o que eu precisava no momento. - Sério – tirei forças do medo de alguém bater no vidro atrás de mim. - Tenho que ir.
Ele se apoiou sobre um cotovelo, dando-me espaço para respirar abaixo de sua silhueta fenomenal, observando-me de um jeito que me fez trocar de posição. Não conseguia sustentar seu olhar contemplativo. Esses tipos de olhares me causam sentimentos complexos demais.
Ambos respirávamos forte. Estávamos risonhos, porque metade do corpo de Flávio estava enfiada de algum modo abaixo do banco do motorista.
- A gente marca outro dia - falei, vestindo minha camisa com um sorriso tímido que não combinava com a vontade que eu sentia em outras seções.
- Por favor - ele ajeitou uma mecha de meu cabelo atrás da orelha, descansando a mão em meu rosto. Me deu outro beijo, dessa vez casto, de despedida. - A gente precisa sair um dia, com calma – calma não tinha nada a ver com a gente, mas mesmo assim assenti. - Só nós dois...Pizza e videogame - continuou.
- Um encontro? - Desacreditei. - Não é muito comprometedor para alguém que gosta de passar só um tempo com pessoas agradáveis?
Seus olhos se estreitaram de divertimento.
- Ficar me vendo em um carro não é certo para o nome da sua família.
Foi minha vez de estreitar o olhar.
- Tá falando sério? Quer mesmo isso?
- Claro. Qual é a graça de só te ver às escondidas?
Fiz um gesto abrangendo o carro e o seu peito nu. Ele riu, mas ergueu as sobrancelhas, aguardando a resposta.
- Tá bom - sorri, nervosa com a ideia de dar um passo diferente, completamente desigual aos planos que me levaram até a orla. - Mas nada muito tarde, Flávio. A tia Elisa tá engajada nessa ideia de reputação.
Ele sorriu, contente.
- Quem sabe ela não ajuda você a se decidir melhor sobre mim.
Seu rosto estava sorridente, mas senti seriedade por trás de suas palavras.
- Acho que tenho que entrar. A gente sempre janta às sete. Obrigada pelo passeio - eu o beijei na boca levemente, mas logo sua língua disse oi à minha, por isso me afastei com uma risada, espalmando seu peito. - Manda um beijo pra Julia.
- Um do tipo amigo ou um desses nossos?
- Do tipo amigo - eu o repreendi de brincadeira. - Tenho que ir – choraminguei, tateando para abrir a porta.
- Tudo bem, tudo bem.
Ele vestiu sua camisa e desceu do carro. Só percebi o que estava fazendo quando abriu a porta, após dar a volta ao redor do veículo, todo antiquado para quem não gostava de compromissos. Seu abraço foi rápido, mas intenso, como tudo o que tinha a ver com ele.
Fiquei um tempo na garagem, esperando a realidade colocar minha cabeça no lugar. Se entrasse com aquela cara e aquela boca totalmente vermelhas, iriam perceber.
As picapes de Bruno e tio Alberto estavam apertadas, uma atrás da outra. O carro do filho estava mais perto da piscina, com a caçamba aberta e a lona de proteção enrolada a um canto. Subi nela e deitei de costas sobre o tecido amontoado, tomando tempo para pensar.
O teto da garagem estava infiltrando, deveriam trocar logo. As manchas de mofo começavam a atravessar o gesso, como as estrias que tinham nascido perto dos meus seios, que não paravam de aumentar com meu apetite crescente, diga-se de passagem. Precisava comprar sutiãs novos, pois os atuais estavam ficando apertados e quase implorando por uma folga. De certa forma, até sorri com a ideia de ter um arsenal de lingerie mais maduro, agora que papai poderia pagar por conjuntos individuais, não aqueles baratinhos da seção adolescente que minha irmã e eu dividíamos. Além disso, se a ocasião vivida durante a tarde se tornasse constante, não poderia repetir tantas vezes a roupa íntima.
Um barulho de carro lá fora indicou que minha tia estava de volta do passeio com a amiga, atrapalhando meus pensamentos sobre vestuário. Não me movi, continuei deitada, meio escondida dela. O portão rangeu, abrindo, mas outros passos vieram ao seu encalço.
- O Alberto tá aí – a voz de Olívio disse.
- É, o Bruno fez besteira de novo – Elisa comentou.
Houve um silêncio.
- Às vezes eu não sei como vocês aguentam esse menino – Olívio respondeu.
Segurei um ofegar. O Olívio estava doido ou queria perder o emprego? Como ele teve coragem de falar dessa forma sobre o filho de sua patroa?
- É só um adolescente, Olívio – ela respondeu de modo doce.
- Quando morarmos juntos, ele pode vir com a gente. Vou colocar ele nos trinque, vai andar na linha – tornou, fazendo tia Elisa rir baixinho, como nunca ouvi antes na vida.
O barulho inconfundível de sucção acusou um beijo.
Ai, meu Deus.
- Até amanhã – Olívio despediu-se.
O ferro do portão reclamou novamente, mas nada se compara ao barulho que meu coração fazia nos ouvidos. Tia Elisa veio andando vagarosamente, e, a cada passo seu, minha morte parecia mais próxima.
Ela me viu, é claro. A luz da área externa iluminava nossas expressões. A dela foi tão séria, tão séria, que nem tive como fingir que não tinha presenciado seu adultério. Mas, pelo incrível que pareça, foi a primeira vez que tia Elisa não me disse nada. Ela só me encarou, apertou a bolsa esportiva no braço e seguiu para dentro de casa.
Achei que, a uma hora dessas, estaria contando a Rafael sobre Flávio e eu sermos só amigos com benefícios. Não que estaria prendendo a vontade de fazer xixi na caçamba do carro de Bruno, por pavor de lidar com a cara de tia Elisa ou de qualquer parente seu nas próximas horas.
Não sei por quanto tempo fiquei lá, com as pernas cruzadas e a vontade de mijar latejando. Nem mesmo conseguia olhar o meu celular para ver as horas. O pânico era demais.
Tia Elisa trai o marido com o Olívio. Eles falam até em morar juntos! Agora, ela sabe que eu sei, o que pode acabar piorando nossa relação.  E eu vou molhar as calças aqui fora, se não entrar agora.
- Eu não admito isso! - O grito de tio Alberto me parou em um desses ensaios para entrar.
- Mas não é o senhor que tem que admitir nada! - Bruno gritou de volta, fazendo-me dar mais um passo para trás e esconder-me de novo na garagem.
- Você só é um moleque! Não sabe que isso só piorou as coisas? Agora eles vão cancelar o contrato, e não vai ter mais nada para você usufruir do meu dinheiro, Bruno! Você vive sob o meu teto, um teto construído com o suor do meu trabalho, sete dias por semana, em todas as horas do dia! Era sua obrigação não ceder a esses impulsos infantis!
- Ele empurrou a Julia! Ele tratou a Luiza mal, deixou ela no restaurante sozinha...
- Isso. Não. É. Motivo! – Martelou cada sílaba, zangado de um jeito que eu nunca tinha ouvido. - É o que eles sempre fazem, Bruno! Você tem que aprender de uma vez por todas a lidar com isso! Eu pedi pra você não fazer nada e ignorar, e o que você fez? Justiça com as próprias mãos!
- Eu não quis ser justiceiro, pai - a voz dele foi entrecortada de choro. - Mas eu tô cansado de ver o Guilherme ganhando tudo e se sentindo melhor do que os outros só porque o pai dele pode mandar matar todo mundo no dia seguinte.
- Não seja ridículo - o pai desdenhou. – Você cedeu porque é um moleque, e um moleque não pensa com a cabeça! O Ferruccio é um homem honrado, tanto que nunca usaria as próprias mãos, como você faz por aí, para tratar de alguma situação em tamanha mediocridade como a sua!
- Eu vejo o jornal – insistiu o menino. – Não venha querer defender ele, isso é covardia da sua parte, da mesma forma como aconteceu outras tantas vezes!
- Covardia é você bater em um menino que não sabe se defender! Isso que é covardia!
- Eu não acredito que o senhor acha isso de mim - Bruno falou mais baixo agora, a voz sendo abafada pelo choro. - A Luiza é sua sobrinha, pai. A Julia é filha do seu melhor amigo, e o Ricardo perdeu tanta coisa...
- E você é meu filho, e agora nós estamos na lista negra daquela família! Meio milhão, Bruno! Você me fez perder um contrato que me renderia meio milhão por ano, depois de tudo o que eu fiz pra manter isso! Você sabe o quanto isso vai custar, além de todo o dinheiro? Hein? Me responde!
Fez-se silêncio por um minuto inteiro, pontuado por cada latejo em minha bexiga. Então, tio Alberto voltou a falar, a voz mais baixa que antes, no mesmo tom perigoso que usara comigo no hospital.
- Acha que chorar vai me amolecer? Acabou pra você! Se você não trabalhar pra manter o seu carro, eu o pego de volta. E tem mais! - Ouvi seus passos pelo chão, demonstrando que eles estavam fora dos limites do tapete que cobria o terreno entre os sofás. - Não vou te colocar como estagiário na firma, então você vai ter que arranjar um emprego sozinho.
Mais silêncio. Meu coração estava menor que uma castanha, de tão apertado.
- Alberto - Elisa falou num fio de voz.
- Não - o marido a cortou de forma ignorante, gritando. - É assim que tem que ser. E eu dou a palavra final aqui nesta casa.
- Posso ir agora? - Bruno perguntou com voz repentinamente firme.
- Para a academia? - Tio Alberto tornou com uma risada sinistra. - Vai me fazer desperdiçar esse dinheiro também?
Não houve resposta, só alguns passos se aproximando de onde eu estava. Nem tive tempo de fingir que não estive ouvindo quando Bruno parou de chofre. Ele me encarou por um momento, surpreso, mas logo seguiu seu caminho, como se eu fosse um móvel que colocaram na garagem sem motivo algum. Seus olhos estavam em chamas, vermelhos e inchados. Parecia ter chorado rios, mas agora só restava aquela expressão de raiva que transformava suas feições finas em verdadeiras facas.
- Aonde tu vais? – Segui ele até a calçada, praticamente correndo.
- Cancelar a academia. Não vão me aceitar sabendo que briguei na rua.
Os nós de seus dedos estavam machucados dos socos que dera em Guilherme. Suas mãos tremiam convulsivamente quando ele puxou o celular do bolso, provavelmente para chamar algum carro para lhe buscar, já que o pai havia trancado a saída de forma até proposital, diga-se de passagem. 
- É melhor não ires assim.
Bruno me encarou do asfalto.
- Por que tá fazendo isso agora?
- Não estás bem.
- Não preciso da sua ajuda. – Arregalei os olhos. Abriu-se um esgar em sua boca vermelha. - O que foi, acha que eu preciso de uma esmola sua a uma hora dessas?
- Como assim? Eu só quero ajudar.
- Por que você não continua o seu caminho e me deixa em paz?
Afastei-me, saindo de perto do portão.
- Obrigado – respondeu e saiu andando, como se fosse levar consigo a casa inteira.
Sem poder fazer nada, caminhei para a sala lentamente. Tia Elisa estava sentada à mesa de jantar, mexendo no celular com a expressão indecifrável e a postura ereta. O marido estava acabando de se servir uma dose dupla de uísque no minibar, vestindo apenas a camisa meio desabotoada do trabalho e a calça já sem cinto. Ao me verem, ambos fingiram naturalidade.
- Luiza, querida - tia Elisa quis me parar. - Onde estava?
Senti a urina escorrer perigosamente no meu short.
- Fui beber água de coco com o Flávio – continuei andando, desesperada.
- Ah – ela fez. - Encontrou com o Bruno aí fora?
- Sim – falei de costas.
- Rafael foi ao médico com a Ana. Retirar os pontos da cabeça. De lá foram jantar – ela continuou falando, como um robô gentil. - Tem jantar lá dentro, na cozinha. Você pode esquentar e comer no quarto enquanto estuda.
Pareceu uma ordem. Senti, bem ali, que ela não estava tão tranquila quanto queria parecer à minha presença.
- Tudo bem – sussurrei, agora correndo.
- Boa noite - os dois disseram ao mesmo tempo, segundos antes de eu voar para o banheiro.

Rafael estava sem o curativo grande na cabeça. Haviam trocado por um menor e menos chamativo, apesar de continuar sendo alarmante para uma careca branco-esverdeada. À luz do meu quarto, então, parecia que seu curativo implorava por atenção.
- Ele ainda não voltou - falou do irmão, enquanto me passava um pedaço de pizza que havia trazido do restaurante. - O quarto dele tá vazio. Vai ver resolveram deixar ele ficar pro treino.
- Ou ele tá fazendo uma besteira - supus com horror. - Ele parecia muito mal. Não sabia que teu pai podia ser tão duro.
Rafael não tirou os olhos do celular.
- Já recebi um ralho desses, sabe. Depois do acidente. Sei como Bruno se sente. Ele sempre foi o queridinho da mamãe e do papai.
- O teu pai só queria falar sobre o dinheiro que o Ferruccio retiraria da empresa.
- Cada um com suas prioridades - concluiu em tom amargo. - E como foi com o Flávio? Você finalmente liberou sua meia virgindade?
Consegui sorrir e narrei o fim de tarde gostoso que passei. Obviamente, parei de falar quando cheguei à parte da garagem, sentindo menos vontade de terminar a pizza sobre a cama. Se Rafael não estivesse engajado nas suas redes sociais, teria me visto empalidecer.
- Que bom que vocês dois estão bem com esse lance de não ter nada sério. Assim o sexo fica melhor ainda. – Joguei uma almofada nele, sentindo minha bochecha esquentar. - Você sempre fica feliz depois de ver o Flávio – Rafael me olhou com carinho.
- Eu sei. Ele é ótimo.
- Mas? – Suspirou, regressando a atenção ao celular.
- Mas ainda assim, acho que estamos só curtindo, e eu gosto disso. Acabei de completar dois meses de término com o Caio. E foi uma merda namorar, não quero passar por tudo aquilo de novo. E...ainda tem o Bruno - Rafael colocou a mão em meu ombro, pronto para discursar.
- Dá tempo ao tempo, Luiza. Você e o Bruno têm uma história juntos, ok. Vocês se gostam, cada um do seu jeito, mas às vezes eu acho que você sofre não por amor, mas por frustração. Por nada ter dado certo e por não terem tido um fim definitivo, e por morarem juntos, e terem que segurar essa tensão sexual que quase explode quando estão sozinhos – ele riu de si mesmo. – Mas, se você se prender pra sempre no que poderia acontecer se o Bruno não fosse seu primo, a sua vida vai passar sem que você conheça pessoas que podem te surpreender e te mostrar o que é se divertir com alguém.
Flávio era aquela pessoa.
- Com'on, prima. Marca esse date primeiro, vive essa oportunidade que a vida tá te dando agora sem pensar sempre que não pode se entregar porque está esperando o Bruno. Acredite, você não vai querer ser como eu, que me prendi a alguém que nem pode me ver se sem levar uma surra do pai.
Meus olhos desfocados se abriram de susto.
- Augusto inventou uma consulta hoje. Ana nos acobertou. O Aluísio bateu nele depois do que houve na festa do Bruno. Por causa da taça que ele quebrou lá.
Coloquei as mãos à boca. O que acontecia com os pais daquela cidade? Os olhos de Rafael estavam brilhando, em contraste ao tom colérico de sua pele.
- Parece que o meu pai tá aprendendo umas coisas com o sócio, não?
- Nem...Nem sei o que dizer - peguei sua mão em cima da colcha.
- O Augusto vai sair de casa. Disse que tem uma grana guardada e vai alugar uma casa na semana que vem, porque não suporta mais viver desse jeito. Ele vai se manter com o dinheiro da loja até conseguir uma coisa melhor, ou seja, sair desse inferno de cidade no fim do ano.
- Caramba, Rafa.
- Por que é tão difícil ser o que a gente é, Luiza? Por que as pessoas magoam as outras pelo que elas sentem? Qual o sentido disso?
- Eu não sei. Também não entendo.
- A única coisa que me consola é que ele vai morar sozinho agora, sabe. Não é a primeira vez que ele apanha daquele filho da puta do pai dele. Se houver uma próxima vez, nem sei o que pode acontecer...
- Alguém deveria denunciar ele.
- Tsc. Por favor. É a mesma coisa que denunciar o pai do Guilherme pra polícia. Ou o pai da Melissa para os Federais.
Não dissemos mais nada. Era tão doloroso ver Rafael chorar silenciosamente daquele jeito, sentindo o preconceito que destruía os laços familiares de seu namorado e impedia os dois de serem felizes juntos. Estaria ele pensando em como seus pais reagiriam quando soubessem de sua sexualidade?
Eu pensei, arrepiada em seguida. Lembrei de Bruno, desolado e fora de si, e das crises que Rafael teve no mês passado, atendido pela empregada da casa mesmo enquanto sua mãe estava lá, sem mover uma palha para ajudar. Ouvi também a voz de Alberto, afirmando que a palavra final na casa era a sua, calando a esposa. Vislumbrei seus pais juntos, fingindo que estavam felizes, à luz de um adultério que poderia estragar ainda mais a vida dos seus filhos, com um escândalo iminente se fosse colocado em público. Se Elisa estava, mesmo, planejando morar com seu amante em breve, meus primos – principalmente o mais novo – precisariam de mim.
- Pode contar comigo. Eu vou estar do teu lado – abracei-o.
- Eu amo você, prima - ele me respondeu, as lágrimas molhando o ombro da camisa velha e macia em que seu rosto descansou.

Ricardo e Rafael me fizeram companhia na escola durante a semana sem os brigões. Os dois eram legais, mas Rafael não era tão amigo de Ricardo, e às vezes o silêncio preenchia nossos intervalos como se implorasse pelas histórias de Bruno e pela tagarelice de nossa amiga. Na sala de aula, então, eu me sentia bastante sozinha. Ricardo até que conversava e gostava de fazer trabalhos em dupla, mas não era Julia, que sempre tinha uma novidade ou algum plano marcado para fazermos durante a semana. Com seu amigo, a convivência era basicamente trocar dúvidas sobre História e estudar a matéria de Química, a única que ainda me deixava desesperada.
- Tô preocupada com a prova do Henrique - reclamei na sexta para Ricardo, enquanto almoçávamos juntos para esperar as aulas da tarde. - Acho que vou passar o fim de semana estudando aqueles cálculos insuportáveis.
- Você não vai para a festa na casa do Augusto? Os pais deles vão viajar, então ele vai dar uma festa para se despedir do apartamento.
E deixar boas multas para sua família, pensei com um sorriso.
- Acho que não, tem muita coisa pra estudar. E a minha tia não vai deixar a gente sair em época de prova – menti.
Nós duas lutamos tanto para evitar contato, que nos vimos apenas uma vez depois daquele dia, quando ela desceu, no café da manhã, para avisar que Olívio tinha tirado algumas semanas de licença por motivo de saúde. Minutos depois, um Bruno de cara amassada precisou nos trazer à escola em seu carro, rotina que se repetiu e se tornou sofrida, principalmente com os olhares dos nossos colegas para ele, que tinha sido suspenso do direito de entrar no prédio.
Além disso, em todas as noites, momentos em que deveríamos jantar em família, Elisa teve algum evento. Encontro na Igreja, jantar na casa de uma amiga, pilates, dor de cabeça, problema estomacal. O estranho é que esses compromissos começavam depois de seu marido chegar em casa e terminavam sempre após a meia-noite, hora em que ela iniciava seus passos de insônia no corredor, deixando-me contar cada pisada de seu tamanco na madeira até pegar no sono.
- Ainda temos que entregar aquele trabalho na semana que vem, de Física – Ricardo comentava com preocupação, ignorando o drama em minha cabeça. Olhei para ele sugestivamente. - Você sabe que não posso te dar minhas respostas. Os professores já me conhecem, eles sabem meu estilo de responder.
- Ah, certo – resmunguei, derrotada e fazendo beicinho.
Seu estilo era o melhor de todos. O garoto era bom em tudo, sério. Ricardo era querido pelos docentes, sempre convidado a responder as perguntas e famoso por retirar sorrisos até do professor de Literatura, que nitidamente não era ouvido por quase ninguém na turma, ainda menos por causa dos livros chatos e tediosos que passava para lermos.
- Tá bom. Eu posso te dar umas dicas, mas tem que ser amanhã. Marquei uma bola de tarde e vou buscar o Bruno no condomínio. Daí eu deixo meu caderno para você dar uma olhada, mas não pode fazer tudo igual, beleza?
Pensar em Bruno só piorava tudo. Ele teria de me buscar na escola mais tarde, mas ficar sozinha no carro com ele era tão gostoso quanto ver sua mãe. Principalmente porque não falávamos nada, desde a segunda-feira, e por ser quase doloroso esconder o que eu sabia sobre as atividades extras de Olívio, o qual costumava ficar em seu lugar no banco do motorista.
- Aliás, ele vem te buscar hoje? – Ricardo se referiu ao nosso novo chofer.
- Sim – suspirei de tristeza.
- Aposto que o Flávio viria te buscar, se você pedisse.
O garoto entendeu minha expressão sofrida de outra forma.
- Mas quando – eu ri. – Acho que ele tem jogo, hoje.
- Não, ele não tem jogo hoje! Você não sabe que os jogos nunca acontecem na sexta? – A sua indignação foi engraçada quando dei de ombros. Apesar de olhar a página do Gioto Sport Clube todos os dias (eles postam fotos incríveis de Flávio jogando, rindo e treinando com os colegas), não presto atenção aos horários das partidas, principalmente porque os comentários das fotos são sempre mais interessantes e enervantes – com a quantidade de garotas que endeusam os jogadores, ainda mais o Zagueiro de Ouro (risos). - O próximo jogo é aqui em Gioto mesmo, contra o Remo, na quarta-feira que vem. Eles estão disputando por uma vaga na série B.
Flávio comentou alguma coisa sobre isso durante a noite passada. Como na quinta ele sai mais cedo da faculdade, pudemos jogar on-line e conversar usando a webcam. Rafael e Julia estavam no grupo, jogando contra nós, e perguntaram sobre essa partida, animados. Eu, pelo contrário, tentava agir naturalmente em todas as vezes que nossos primos mandavam indiretas sobre nossa amizade colorida, dizendo que éramos "o único casal que não brigava por causa de videogame". Flávio não corrigia a referência ao nosso rolo, mas eu enviava palavrões para os amigos em suas abas privadas.
- Vai ter uma festa na casa da Julia, né? Se o GSC subir de série?
- Não só na casa da Julia, mas em todas as casas. A cidade vai parar, você vai ver. É a primeira vez que o Remo vai jogar aqui depois de 2008, quando perdemos dele na Copa Verde. Eu odeio aquele time, quer dizer, todo mundo odeia. Meu irmão sempre falava disso com ódio, e agora ele não para de planejar uma saraivada de fogos quando vencermos aqueles desgraçados.
Ricardo também fala palavras difíceis, como "saraivada".
- Tu tens irmão?
- Tenho dois, um mais velho e uma menor, que mora com a família do meu pai! Eu já disse isso, lembra? – Eu não lembrava, mas fingi que sim. – O meu irmão trabalha com seu pai, sabia?
- Sério?
- É, ele é dos Serviços Gerais da empresa. Ele comentou que o seu pai é legal. Que é organizado, não suja tanto a sala.
- Meu pai vai ficar feliz em saber disso, ele é todo chato com organização.
- É provável que eu trabalhe lá também. Abriu uma vaga no almoxarifado, já que o Bruno não vai mais entrar.
Ricardo era muito amigo de Bruno, por isso sabia da briga com Alberto e se solidarizava com a situação, sentindo-se culpado por ter sido um dos pivôs da última briga.
- Tomara que tu consigas essa vaga – comentei, já reconhecendo, em seu olhar boboca, que ele nem estava me ouvindo.
Era Ísis, entrando no refeitório para comprar bombons na lanchonete. Como as provas estavam se aproximando, outros alunos começavam a aparecer para as monitorias, como a ruiva e a Su Taguchi. As duas nunca falavam comigo nessas situações, principalmente porque, como soube através de Augusto, Ísis achava que Ricardo e eu tínhamos alguma coisa além de amizade escolar, devido ao fato de almoçarmos juntos todo dia e de o rapaz ter me dado carona para a festa de Bruno.
Eu sorri para ele, que acompanhou as duas até sumirem. Ricardo era muito apaixonado por Ísis. Sempre depois de vê-la nossa conversa morria. Mas, dessa vez, resolvi ressuscitá-la em prol do bem maior.
- Vai lá – encorajei.
- Rum, até parece – ele mordeu seu sanduíche trazido de casa tristemente. – Já acho que dessa vez não tem mais volta.
- Acho que tem – tornei. – Acho que ela nem precisa estudar tanto, só vem pra poder te ver, não achas? A não ser que ela seja viciada em bombom - ele riu, discordando. - É, sim. O Rafael me disse que a Ísis é muito boa em matemática, que acerta todas as questões que o professor deles passa. E hoje é monitoria de matemática. O que ela viria fazer aqui?
Ricardo pensou, limpando os lábios com um guardanapo. Ele era tão alucinado pela menina, que nem conseguiu esconder certa excitação.
- Vou tentar alguma coisa na festa, amanhã – ficou mais ereto na cadeira.
- É assim que se fala – sorri, feliz.
- Mas só se você for também. Pra me dar apoio moral.
Concordei só para não desapontá-lo, mesmo que não fosse pedir, nem morta, para ir a algum lugar se dependesse da autorização de tia Elisa. Teria que envolver meu pai nisso, apesar de estar com vergonha de lhe telefonar depois da nossa última conversa.
Contei a Otávio sobre o colar tardiamente, na quinta-feira à noite, por telefone. Não lhe disse o valor e fiz questão de mencionar o presente como se fosse uma bobagem, mas ele aproveitou a oportunidade para tirar sarro da minha cara, dizendo que marcaria um jantar para Flávio e ele conversarem como sogro e genro, não sobre negócios, como estavam acostumados a fazer. Naquela mesma noite, minutos depois, mamãe me ligou para desenterrar os detalhes que o marido deixara passar, e não foi legal ouvir suas ameaças de que gostaria de conhecer esse Flávio pessoalmente quando chegasse aqui.
Resolvi narrar isso a Ricardo, que me ouviu com atenção, na mesma expressão de quando os professores passam matérias novas. Achei justo elevarmos a nossa amizade para algo além de fórmulas e períodos históricos, agora que já trocávamos conselhos amorosos.
- Ele e você estão sérios? - Perguntou enfim.
- Não - respondi rapidamente, mas completei pela sua expressão de incredulidade. - Quer dizer, nós estamos... Sei lá, a gente ficou um dia desses, na segunda, e estamos nos falando todos os dias.
- Hm. E por que a sua família tá toda se envolvendo? Eles são puritanos?
Tentei não fazer uma careta.
- Não é isso. É que eu namorei até pouco tempo com um cara...
- O Caio, seu vizinho – Ricardo estava a par de tudo. – É uma cidade pequena, Luiza. Não sou fofoqueiro, mas escuto as meninas da escola falando da sua vida. E a Julia não para de me falar desse Caio desde que ele chegou aqui.
- As meninas da escola falam da minha vida? – Ignorei a parte de Julia com fervor. Ela nunca me falava disso por motivos óbvios, apesar de estar apaixonada por ele de verdade. Na internet, era comum ver os dois curtindo as fotos uns dos outros, o que sempre me dava náuseas. Talvez, Ricardo tenha abordado o nome do menino a mando da própria Julia, que não tinha coragem suficiente para sondar minha opinião sobre os dois. 
- Todo mundo fala da vida de todo mundo. Principalmente porque o Flávio tem umas seguidoras bem apaixonadas, e vamos só dizer que existem alguns comentários sobre uma morena que ele beijou na orla, essa semana, rolando por aí.
Poderiam enfiar uma bola de futebol pela minha boca aberta. 
- Mentira.
- Acho melhor você tomar cuidado – ele balançou a cabeça, rindo para os farelos de seu pão. – São muitas seguidoras para lidar quando vocês deixarem de ficar e forem pra outro nível, que com certeza já tá chegando.
Achei graça ao ponto de gargalhar pelo seu modo de falar, idêntico ao de Julia e Rafael. Eu não era nada perto de quem Flávio estava se transformando, ou seja, em alguém importante. Se essa fama se expandisse mais, ele conheceria outras garotas, várias, milhares. Jogadores de futebol que estão fazendo sucesso, que são ricos e estão na faculdade, não se interessariam por uma menina do 3º ano do Ensino Médio. A não ser para se divertir.
Logicamente, atestar isso não deixava de doer um pouquinho, bem lá no fundo do meu orgulho ferido.

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