3 - Fones de Ouvido

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Eu estava absorto em meus pensamentos e não notei quando Alegra nos fez parar em frente a uma janela simples e com a tinta descascando. Rapidamente voltei à realidade e mais uma vez observei dentro da janela. Lá dentro, pude notar um garoto mais ou menos do meu tamanho e que parecia ter a mesma idade que eu. O garoto estava deitado em uma cama de madeira bastante judiada e desajustada, o que, olhando ao redor, me fez concluir que tinha o mesmo aspecto do resto do quarto. Então percebi que o garoto estava usando fones de ouvido que, diga-se de passagem, estavam extremamente altos.

- Esse é o Vitor, ele é o irmão mais velho de uma família com 5 filhos, todos os outros são bem mais jovens que ele, e dentre eles ainda há uma bebê recém-nascida. Vitor ama música e aprecia tudo que é relacionado a isso, inclusive cantar que é seu hobby favorito. O maior sonho da vida dele é mudar de vida através de sua música, já que a família dele passa por muitas dificuldades e muitas vezes ficam até sem o que comer. Ele costumava frequentar a escola, porém, há alguns meses teve de abandoná-la para trabalhar, visto que seu pai adoeceu seriamente e já não podia nem mesmo levantar-se da cama. – contou Alegra num tom sombrio.

- Que vida difícil, ele me parece uma pessoa muito sofrida, até o olhar dele reflete uma dor interior muito profunda – comentei com um pouco de tristeza.

- A vida dele nunca foi fácil, no entanto, quando mais novo, ele costumava ter muita esperança e muita força de vontade, ele acreditava fielmente que um dia iria realizar seus sonhos e conseguir tirar sua família do buraco. Porém, as coisas mudaram, Vitor está cada dia mais amargurado e sem esperança, ele não vê mais uma saída e ainda conta com um novo agravante em sua vida.

- O quê? O que poderia causar ainda mais dor a uma pessoa já tão sofrida?

- Recentemente ele contou a mãe dele que na verdade ele sentia-se atraído por outros garotos, e a reação dela não foi nada boa. Ela o colocou para fora de casa e ordenou que ele esquecesse que ela existe, e, com isso, ele foi morar literalmente embaixo de uma ponte.

- Meu Deus! Que situação horrível, eu nem consigo imaginar como ele se sentiu. Mas, como ele retornou para casa?

- Alguns dias depois, seu pai que, ao saber do acontecido, brigou feio com a esposa e disse a ela que ela só expulsaria um filho dele de casa no dia e sua morte, mandou buscá-lo e trazê-lo de volta.

- Que barra, o Vitor deve ter se sentido horrível.

- Sim, por um lado ele ficou feliz que o pai dele o aceitou e compreendeu, mas por outro ficou extremamente sentido e machucado com a atitude de sua mãe, ele sempre a considerou sua melhor amiga e a pessoa mais importante de sua vida, foi como um tiro no peito. Além disso, quando ele voltou para casa ela deixou claro que não faria nada por ele e que iria fingir que ele não existe, e desde então ela tem ignorado a presença dele e agido como se ele nem estivesse lá.

- Que absurdo! Eu simplesmente não entendo como existem pessoas que são capazes de odiar as outras apenas por elas serem quem são, isso não muda absolutamente nada, ele continua o mesmo, talvez apenas um pouco mais fragilizado.

- Com certeza, e isso tudo tem causado danos gravíssimos na saúde mental do Vítor. Ele passa a maior parte do tempo livre dele desse jeito, com fones de ouvido no maior volume possível e fingindo que o mundo se resume a isso.

- Ele não tem planos para mudar a própria realidade? Para conseguir sair dessa situação?

- Ele tinha, seu maior sonho é viver de sua música, ele fez testes para uma banda iniciante e conseguiu passar. No entanto, os participantes da banda precisavam investir uma quantia para começarem a comprar instrumentos e outros equipamentos necessários, e o Vítor não tinha esse dinheiro, então outra pessoa foi colocada em seu lugar. Diante disso ele perdeu as esperanças e acabou desistindo de seu sonho.

- Sinceramente, parte meu coração ouvir isso, queria muito poder ajuda-lo de alguma forma...

Com lágrimas nos olhos cheguei mais perto da janela e olhei fixamente para o Vítor. Após alguns segundos, o garoto se sentou na cama, abriu um caderno, tirou os fones de ouvido e pôs-se a escrever. Ele colocou o seu celular perto de si e deu play na música que estava ouvindo e aumentou até o último volume. Então percebi que, na verdade, eu conhecia aquela música, era uma de minhas músicas favoritas o que só contribuiu para aumentar a tristeza que estava sentindo.

Então, mais uma vez, Alegra pegou em meu braço e disse que iria levar-me para a última visita da noite, e assim nós saímos flutuando e ouvindo a linda música que vinha da janela...

"...I don't need to live by your rules, you don't control me

Until you've walked a mile in my shoes, you don't know me..."

A Carga Dos DiasOnde histórias criam vida. Descubra agora