Parte 1. (Rachel)

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    Logo após as 3 da manhã, Sam Dryden renunciou à noite por conta da insônia e saiu para correr à beira da praia. Uma umidade fresca o abraçou e filtrou as luzes de El Sedero à sua esquerda - a cidade passava como um navio petroleiro na neblina. Ao seu lado direito estava o pacífico, preto e silencioso como a borda do mundo nesta noite. Ele ouvia o ruído dos próprios passos na madeira velha da orla, ecoando a por todos os lados na escuridão.
    Era tão bom quanto não dormir. O sono trazia sonhos de momentos felizes e, à sua maneira, eram piores que pesadelos.
    Luzes de mercúrio ao longo da orla brilhavam na névoa. Elas seguiam como uma serpente em direção ao Sul, tendendo ao infinito, porém, pretende-se na escuridão onde as madeiras do caminho terminavam no canal. Dryden passou por uma fogueira ocasional na praia e ouviu trechos de conversam que se amplificavam na neblina. Vozes suaves, risadas, silhuetas bordadas circuladas pela luz do fogo. Rápidas visões do que a vida poderia ser. Dryden se sentiu um intruso observando aquelas pessoas, como um fantasma passando por elas no escuro.
    Essas corridas noturnas eram algo novo, ainda que ele vivesse em El Sedero por anos. Havia começado a correr algumas semanas antes, a qualquer hora da noite. A vontade aparecia como pulsões contra às quais ele achava que não podia lutar. Dryden não havia tentado, até então. Ele achava o esforço e o ar frio refrescantes, até agradáveis. Sem dúvida, o exercício também era bom, ainda que, aparentemente, não precisasse disso. Tinha por volta de um metro e oitenta e parecia não ter mais do que 36 anos. Talvez as corridas fossem apenas uma tentativa de sua mente de lhe dar um pontapé para sair da inércia.
    Inércia. Foi assim que um amigo chamou, meses atrás. Um dos poucos que ainda apareciam. Há cinco anos, logo depois que tudo aconteceu, existiam muitos amigos. Eles haviam dado apoio quando, supostamente, tinham de fazê-lo. E depois foram insistentes, pois o incentivaram da forma como pessoas que se importavam faziam. Empurraram-no para que ele começasse a vida novamente. Ele disse que estava agradecido, disse que eles estavam certos - é claro que a vida tem de continuar depois de um tempo. Dryden concordava e balançava a cabeça, e os via ficar tristes quando entendiam que ele só estava dizendo aquelas coisas para fazê-los parar de falar. Ele não tentará explicar seu lado. Não dissera a eles que ter saudade de alguém podia parecer como ser deixado a postos, observando. Que isso poderia ser como uma missão.
    Ele passou da última fogueira. Aqui, a praia se tornou cheia de pedras e úmida, o sereno absorvendo e brilho de cada poste de luz. A costa estava vazia pelas próximas centenas de metros.
Um minuto depois, no meio de um trecho morto, Dryden chegou a uma intersecção no caminho; uma segunda ramificação levava para dentro da cidade.
    Ele diminuiu o passo e parou. Quase sempre parava naquele exato lugar. Não tinha certeza do que o levava a isso. Talvez, apenas o vazio. A bifurcação estava no escuro entre luzes e nunca havia ninguém por ali. Em noites como essa, sem lua e sem surfe, esse lugar era o equivalente a uma cela de privação sensorial.
    Ele se apoiou no guarda-corpo de madeira com os cotovelos, olhando para o mar. Conforme sua respiração  foi ficando lenta, sons fracos finalmente chegaram a seus ouvidos: o chiar de pneus na estrada, meio quilômetro para dentro da cidade, além das dunas. Pequenos animais se movendo na grama da praia atrás da orla. Dryden estava ali por mais de um minuto quando ouviu outro barulho: passos de alguém correndo pelas madeiras do calçadão.
    Por um momento, pensou que fosse outra pessoa fazendo caminhada. Então percebeu que não, pois o ritmo era acelerado demais. Alguém estava correndo a toda velocidade. No ar saturado era difícil traçar a origem do som. Ele olhou para baixo, à esquerda e depois para a direita ao longo da costa, mas não viu  ninguém chegando onde estava iluminado. Enquanto se desencostava do guarda-corpo olhando para rota que levava à cidade, uma pessoa correndo colidiu com ele, vinda daquela direção.
    Ouviu um suspiro - a voz de uma jovem garota. Instantaneamente ela estava lutando, empurrando-o em pânico, já se virando para sair em disparada pelo curso da costa.
    - Ei - falou Dryden -, você está bem?
    Ela parou e olhou para ele. Mesmo sob a luz fraca, Dryden podia ver que a garota estava aterrorizada com alguma coisa. Ela o encarou com atenção e continuou tentando correr, ainda que parecesse estar sem fôlego para chegar muito longe dali. Vestia jeans e camiseta, mas estava sem sapatos ou meias. Seu cabelo - castanho-escuro, um pouco abaixo dos ombros - estava limpo, porém despenteado. A menina não podia ter mais de 12 anos. Por um momento muito rápido, seus olhos se intensificaram; Dryden podia ver os pensamentos passando pela cabeça dela.
    E, de repente, a postura defensiva dela mudou. Ela continuou com medo, mas não dele, e virou seu olhar para a cidade, para a direção da qual tinha vindo, sondando a escuridão. Dryden olhou também, mas não viu nada fora do comum. O caminho de madeira que ia em direção à cidade levava ao porto, bem em frente ao cumedas dunas, envoltas pela noite densa. Tudo parecia calmo e quieto.
    - Você mora aqui perto?  - perguntou a garota.
    - Quem está te perseguindo?
    Ela se virou para ele mais uma vez e se aproximou.
    - Eu preciso de algum lugar para me esconder - disse ela. - Eu vou te contar tudo, mas, por favor, me tire daqui primeiro.
    - Vou te levar para a delegacia, menina, mas não...
    - A polícia não - disse ela, de maneira tão inesperada, que Dryden sentiu um impulso de se virar e continuar com sua caminhada. Qualquer que fosse a razão da encrenca da garota, envolcer-se com isso não melhoraria a noite dele.
    Vendo a mudança de expressão, ela deu um rápido passo adiante e agarrou a não dele, implorando com os olhos.
    - Não estou fugindo da polícia. Não é isso.
    O olhar da garota se voltou rapidanente para o lado mais uma vez, no mesmo instante em que Dryden percebeu um movimento em sua visão periférica. Ele seguiu o olhar dela e, por um momento, não conseguiu entender o que via. De alguma maneira, agora ele podia discernir as formas das dunas, invisíveis na escuridão de poucos minutos atrás. Elas estavam emolduradas por uma luz turva e em movimento. A respiração da menina ficou ofegante.
    - Sim ou não? - questionou ela. - Não posso mais esperar.
    Dryden conhecia o som do medo na voz de uma pessoa.
Essa garota não estava com medo de ser presa por algum mau comportamento; ela estava temendo pela própria via.
    A luz ao redor das dunas ficou mais forte, e Dryden logo entendeu o que estava vendo: pessoas com lanternas estavam prestes a criar o limite das dunas do outro lado. A vontade de se distanciar da garota foi substituída por uma sensação de que algo ali estava muito errado e que ela não estava mentindo.
    - Venha - disse Dryden.
    Ainda segurando a mão dela, ele correu pela orla, voltando em direção à sua casa  ele teve que diminuir um pouco o passo por causa dela. Enquanto corriam, Dryden continuava a olhar para as dunas. Haviam percorrido não mais que cinquenta metros quando o primeiro feixe de luz chegou ao topo da duna mais alta. Dentro de segundos, outros três apareceram - o que o deixou surpreso do quão próximos estavam; a noite fora traiçoeira com seu senso de distância.
    À frente, no calçadão, uma das luzes vinha em direção à eles rapidamente. Dryden parou, e a garota puxou seu braço até quase arrancá-lo para que ele continuasse.
    - o que você está fazendo? - perguntou ela, prestando atenção nos perseguidores com a mesma tensão  que Dryden.
    Ele balançou a cabeça apontando para o cone de luz na orla.
    - Eles vão nos ver se corrermos na direção daquela luz.
    - Nós não podemos ficar aqui - disse a garota.
     Os homens com lanternas - agora seis deles - estavam descendo com velocidade pelo lado visível da duna.
     Dryden olhou por cima do guarda-corpo no lado da orla em que estava o oceano. A praia estava somente a alguns metros abaixo. Ele testículos em direção a ela, e a garota entendeu. Ela escorregou por debaixo do guarda-corpo que chegava a altura da cintura, e ele a seguiu, com os pés tocando as pedras debaixo do caminho de madeira. Uma faixa de areia levemente rochosa se estendia por algumas dezenas de metros além das pedras, até chegar na água. Dryden se ajoelhou e tocou o solo; era suave e plano, saturado pela umidade e, pelo que podia ver no escuro, não marcava pegadas. Se  ele e a garota se movimentassem em direção à areia da praia, os perseguidores facilmente veriam as pegadas e os seguiriam.
      Ele virou sua atenção para o espaço abaixo do calçadão de madeira. Não era promissor. As pedras amontoadas tinham o tamanho de uma bola de vôlei; escolher caminhar por elas seria lento, especialmente no escuro. Pior, vigas de sustentação se cruzavam a cada metro. Fariam pouco progresso até que os chegassem e, certamente, pelo menos um dos seis desceria à praia para iluminar aquele espaço debaixo das madeiras da orla. Como esconderijo, não era muito propício.
    Dryden olhou para cima e viu que os homens alcançavam a base da duna. Tudo estava acontecendo rápido demais. Na noite calma, ele ouvia os passos acelerados no asfalto e no caminho do porto, e então na madeira da parte do caminho que vinha da cidade. Em menos de trinta segundos, os homens chegariam ao ponto exatamente acima de onde estavam escondidos.
    Dryden olhou para os apoios cruzados abaixo da orla e viu a única solução disponível. Guiou a garota para debaixo deles. Ela estava tremendo, mas parecia aliviada por sair do campo de visão dos homens. Abaixo da superfície ripada, vigas pesadas passavam nas laterais, na longitudinal do caminho. Acima dessas vigas havia espaços, não grandes o bastante para que uma pessoa coubesse ali, mas suficiente para um par de pés ou mãos. 
    - Segure-se em mim - disse Dryden, puxando a menina contra seu peito. Ela aceitou sem hesitar; os passos dos homens se aproximando começaram a balançar as ripas.
     À medida que a jovem abracava-o com firmeza, Dryden alcançou com as pontas dos dedos uma das vigas mais baixas - ela era grande demais para que ele a envolvesse com suas maos - e então balançou seus  pés para cima e os enganchou no espaço acima da próxima viga, a oitenta centímetros dali. Ele fez de seu corpo uma rede, com a garota em cima dele, e segurou-se o mais próximo possível das madeiras. Era como fazer uma flexão de ponta-cabeça.
    Imediatamente ficou claro que ele não podia se segurar nessa posição por muito tempo. Tudo aquilo estava errado. As pontas  de seus dedos não ofereciam tração contra as vigas gigantes, necessitando que ele aplicasse pressão para se segurar. Os músculos de seus antebraços queimaram em segundos. Ao mesmo tempo, manter seu corpo reto significava contrair metade de seus músculos de um jeito que eles não deveriam ser contraídos.
    A garota parecia entender, talvez sentindo os músculos dele tremendo. Enquanto os passos faziam um estrondo em direção a eles, ela colocou sua boca no ouvido dele e sussurrou:
    - Eles tem armas. Vão nos matar.
    Um instante depois, o espaço das madeiras acima deles se encheu com a claridade das lanternas. Os homens chegaram e começaram a se espalhar pelo calçadão.
    Um deles falou, com uma voz clara e forte, como a de alguem acostumado a dar ordens.
    - Procurem na praia. Procurem embaixo do passadiço.
    Coturnos roçaram a madeira e em seguida aterrissaram com forca nas pedras que estavam próximas. O brilho das lanternas preencheu a visão periférica de Dryden, ainda que, por aquele momento, os feixes continuassem apontados em direção ao mar. A menina abraçou-o com mais forca; ele sentiu-a fechar os olhos enquanto apertava o rosto contra o ombro dele. A esta altura, a dor em seus músculos ia além da queimação, mas isso não era problema. Havia formas de ignorar a agonia - Dryden as tinha aprendido há muito tempo -, mas em algum momento seus músculos simplesmente falhariam. Força de vontade não venceria o vigor físico para sempre.
    ele conseguiu girar a cabeca alguns graus em direção a praia. Os feixes de luz das lanternas terminaram a varredura da areia e, então, um por um, viraram-se para varrer o espaço abaixo do calçadão. Dryden olhou para cima novamente, para previnir que seus olhos brilhassem. Olhando para as ripas acima de seu rosto, viu um brilho difuso de feixes passando abaixo dele. Se ao menos um daqueles perseguidores fosse inteligente ou estivesse com suspeita o suficiente para levantar a luz mais uns sessenta centímetros, tudo estaria acabado. Dryden esperou pela luminosidade ofuscante que sinalizaria exatamente isso.
    Ela nunca aconteceu.
    A vaga claridade se afastou da vista. Escuridao. Dryden contou ate dez e arriscou outra olhada para a praia. Os perseguidores haviam se movido em direção ao norte, inspecionado a orla no percurso. Era hora de se soltar e tentar escapar em silêncio, qualquer que fosse o risco. Cada momento que ele demorava aumentava a chance de simplesmente cair, o que seria qualquer coisa, exceto silencioso. Estava começando a escorregar o pé para fora do espaço entre as madeiras quando um som o parou.
    Passos. Pesados e lentos, na madeira acima deles. Aproximavam-se vindos do sul, a direção da qual perseguidores haviam vindo. Dryden permaneceu congelado. O homem estava na orla exatamente acima dele; grãos de areia caíram no rosto de Dryden.
    - Clay! - chamou o homem, gritando. Era o líder. O cara da voz. Ele havia permanecido na orla enquanto os outros faziam a busca.
    Um dos homens na praia, aparentemente o Clay, virou-se e se aproximou, sua lanterna balançando perigosamente acima do solo. Ele parou próximo ao guarda-corpo, olhando para cima, para seu líder. Se tivesse abaixado o rosto e espiando à frente, teria travado seu olhar com o de Dryden, a não mais  de quarenta centímetros de distância. Dryden não arriscou sequer virar sua cabeça para cima novamente; o menor movimento poderia denunciá-lo. Ele torceu para que o tremor de seus músculos não se mostrasse tão intenso quanto ele o sentia.
    Dryden não podia ver quase nada das feições de Clay. O homem era praticamente uma silhueta contra o céu e o mar negros. Apenas a deflexão luminosa do feixe da lanterna oferecia algum detalhe: cabelo médio para longo, roupas escuras, uma arma pendurada na lateral com uma alça de ombro. Possuía uma submetralhadora - algo como uma mp-5 com um silenciador pesado .
    Acima deles, o lider disse:
    - Isto já está fora de controle. Volte para a van, faça a cobertura dos canais de comunicação policiais em um raio de trinta e dois quilômetros. Ligue para o Chernin, faça-o focar nos telefones celulares pessoais de oficiais e de quaisquer agentes federais dessa área. Fiquem atentos a palavras-chave como garota e perdida. Tentem a ala psiquiátrica enquanto estiverem fazendo isso.
    - Você acha que se a menina falar com alguem - disse Clay -, eles pensarão  que ela saiu de um hospital psiquiátrico?
    Dryden de repente sentiu seus dedos escorregarem da Madeira umedecida pela neblina. Não havia esforço que pudesse pará-los; ele ia se soltar em questão de segundos.
    - Há grandes chances - disse o líder.
    As pontas dos dedos de Dryden se seguravam por um centímetro. Ele sentiu essa margem diminuir pela metade no tempo de uma respiração.
    - E se nós perdermos a trilha de qualquer forma? - perguntou Clay.
    Por um segundo o líder não respondeu. Então ele disse:
    - Ou ela é enterrada nas cascalheiras, ou nós somos.
    Dryden se tencionou para cair, tentando imaginar qualquer maneira de ficar de pé e fugir com a garota.
    Naquele instante, ele a sentiu se movimentar. Sem fazer nenhum barulho, ela tirou seus braços do peito dele e os levou em direção à viga, para alcançar os dedos dele, apertando-os com todas as suas forças. A pequena força que ela conseguia aplicar foi suficiente para fazer a diferença; ele se firmou.
    Acima do clamor de pensamentos que demandavam atenção de Dryden, um tomou precedente por um rápido momento: como raios ela sabia?
    Um segundo depois, Clay colocou a lanterna no bolso, subiu no calçadão e correu na direção da qual o grupo havia vindo. Dryden esperou até que o líder se tivesse e saísse dali também, mas, por um momento, apenas permaneceu ali, sua respiração era audível na escuridão. Então virou-se e saiu fazendo barulho, em direção ao norte, junto aos perseguidores. Quando o som dos passos fico longe, até sumir, Dryden enfim escorregou da viga, balançou-se e ficou de pé. O sangue correu por suas veias como agua gelada. A garota equilibrou-se nas pedras e inclinou-se para além dele a fim de olhar para a praia. Dryden observou também: os perseguidores estavam a centenas de metros dali.
    A garota fungou. Dryden percebeu que ela estava chorando.
    - Obrigada - sussurrou ela, com a voz falha. - Sinto muito por você ter tido que fazer isso por mim.
    Dryden tinha milhares de perguntas. Todas elas podiam esperar alguns minutos.
    Ele se virou e examinou a cidade para encontrar a melhor rota para sair dali. Havia um espaço de escuridão confortável entre a orla e a rua do porto. Em um quarteirão rumo ao norte, as ruas baixas de El Sedero se ramificavam para dentro da cidade, sob a cobertura da noite. Ele e a garota poderiam pegar o caminho mais longo e circular até chegarem de volta à casa dele, a menos de um quilômetro ao norte da praia.
    Olhando pela última vez para garantir que os perseguidores ainda estavam se movendo para mais longe, Dryden guiou a garota por baixo do calçadão e até o longo gramado além dele.
   

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⏰ Última atualização: Jun 26, 2020 ⏰

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