O dia está a escurecer e o seu ar a ficar cada vez mais pesado e difícil de respirar. Estou com a minha mamã e com a minha mana mais nova neste supermercado pequeno e desconfortável, e o ar do anoitecer torna este momento muito difícil de superar, mas que é sobreposto por uma sensação de conforto e proteção por ter a minha mãe e a minha mana de três anos ao meu lado. São a minha família e o meu lar.
A mamã comprou o que precisava para fazer o jantar para o meu pai, que trabalha até tarde. Esta noite, ele ia jantar apenas comigo e com a mana, pois a mamã ia sair essa noite, o que é muito estranho, pois nunca estive um serão sem a companhia da mamã que tanto me protege e me completa. Ela tinha tudo preparado com bastante antecedência, pois a casa nunca está sem ela. Eu nunca estava sem ela. Nunca dormi na mesma casa onde não tenho a minha mamã, apesar de já ser crescida, ter uma bicicleta sem rodinhas e levá-la para e escola. Já sou tão crescida que já não levo a minha mantinha azul para a escola, porque a minha escola é só para crescidos. E olha que eu adoro a minha mantinha e a sensação de conforto que ela me provoca! É como um abraço da mamã que está à minha volta enquanto adormeço de facto nos braços da mamã, agora com a companhia da mana pequena.
Não queria passar a noite sem a mamã. A mantinha não protege tanto como se tivesse a mamã comigo. Irei esperar que a mana e o papá adormeçam, e levarei a minha mantinha e a minha bicicleta. Vou com a mamã, sem que ela saiba. Com a noite e com esta ideia, saí resoluta atrás do rasto da mamã e, com muito custo, muitas dores e com um ar ainda mais duro, subo a íngreme estrada que a mamã subiu. Pareceu que se passou muitas horas até eu chegar ao topo. Mas consegui e vi a mamã a falar com uma senhora muito bonita. Oh, como era bonita... Tinha um rabo de cavalo a prender o seu cabelo longo e negro muito brilhante e grosso. A pele dela era tão branca que a luz da lua refletia o seu rosto e eu conseguia ver com clareza os seus lábios muito vermelhos. A mamã também é branca, eu também sou branca, a mana também é muito branca, mas esta senhora era tão branca como a lua.
A mamã parecia já ter muita confiança com esta mulher, pois conversavam e estavam muito próximas. Como estou curiosa! Tento aproximar-me, muito atrapalhadamente dela. Faço barulho, mas escondo-me junto com a minha bicicleta. Mas a mantinha ficou na estrada. Agora não consigo recuperá-la. Após uma pausa, a mamã e a mulher recomeçam a conversar. Falam de uma marca do passado. Não percebo nada da conversa e não tive tempo de saber mais nada pois elas começaram a andar e entram num caminho muito estranho e confuso. Nunca tinha ido ali com a mamã. Não conhecia aquele caminho e as árvores e mato assustavam-me muito. Não havia quase luz nenhuma, além dos pequenos raios de luz da lua que conseguiam ultrapassar os ramos cheios de folhas das árvores. A senhora parecia conhecer bem aquele caminho, pois nem precisava de procurar a luz para saber o caminho. Ela andava muito à vontade naquele caminho tão esquisito.
Elas entram dentro desta casa grande que parecia um castelo como os dos livros de princesas que a mamã lia, mas muito velhinho, sem brilho ou cores e sem princesas. Para continuar a minha jornada, deixo a minha bicicleta, escondida entre um arbusto e uma árvore velhinha, subo as escadas que levam à uma porta muito alta e entro na casa grande.
Não havia muita luz na casa grande além da que entrava da luz da lua pelas grandes janelas. Mas este castelo não precisava de mais luzes... Não devia morar ninguém lá. Estava muito silêncio, mas tanto silêncio que eu conseguia ouvir a minha respiração. Estava cansada e com soninho. Queria ir embora com a mamã e ir dormir. Não gostava nada daquele sítio. Era frio e escuro. Cheirava a pó. Não tinha ninguém. Estava assustada, muito assustada... Doía o peito de tanto medo. O bater do meu coração ecoava nas paredes frias e ocas daquela casa escura. Quero a mamã, e quero-a agora!
Ouço a voz da mamã e sigo a sua voz que me deu coragem para mexer à procura do seu conforto e proteção. Mas ando e ando, abro portas, e entro em sítios cada vez mais escuros e frios. Parecia um labirinto e não encontrava a minha mamã. Decidi voltar para trás e ir ao encontro de alguma luz. Mas no momento em que me viro para trás, estão dois olhos muito vermelhos a olhar para mim...
Com uma chama no meu peito e com lágrimas nos olhos, grito e começo a correr sem destino... E corro com toda a força que as minhas pequenas pernas tinham... E volto ao ponto de partida... volto para o lugar onde tinha a luz da lua. Cansada, assustada e sem força, deito-me no chão, a chorar com as forças que me restam. Só quero ir embora com a mamã... Quero a minha mamã. E neste momento, sinto a respiração de alguém no meu ouvido... Era como se aquela respiração fosse ainda mais pesada, lenta e sonora... Como suspiros... Como se fossem as últimas respirações de alguém que estava prestes a...
Lembro-me que quando eu era da idade da minha mana e ela ainda não existia, tinha ido com a mamã ao supermercado do costume e eu costumava a levar a minha mantinha. Estava sempre agarrada a ela e não ia a lado nenhum sem ela. Era azul como os olhos da mamã. Como gostava de ter a minha mantinha agora. Nessa memória minha, a mamã estava a falar com uma senhora, com quem falou muitas horas, ao ponto de eu adormecer nos braços dela. Seria a mesma mulher? Não me lembro muito bem, foi há muito tempo. E agora? Estarei a dormir? Confusa, levanto a cabeça.
É a mamã! A respiração pesada é dela, é da mamã! Como fico feliz por breves, mas breves momentos. Era a mamã, mas a mamã estava com os olhos vermelhos e não azuis. Não percebo... Porque a mamã tem os olhos daquela cor? Porque está a respirar assim? Porque não é confortável estar ao pé dela? Só queria ir embora com ela, mas ela disse que não podia, que agora era tarde de mais! E aí reparo que ela tem dois buracos no pescoço dela e que saía sangue de lá. Estaria ela a... morrer? Não, não quero viver sem a minha mamã! A minha mamã... que a mulher do cabelo negro agora abraçou e me disse que agora já não era a minha mamã. E a mamã não se mexia... Eu chorava... A mulher ria-se... Doeu tanto, mas tanto, que não tinha forças... Sinto a minha cabeça a bater no chão e de repente...
Escuridão.
Um novo silêncio surge com o amanhecer, mas era mais leve. Uma bicicleta é encontrada meia escondida entre um silvado e uma velha árvore. Junto a essa mesma árvore, foi encontrada uma menina de seis anos embrulhada numa manta azul com manchas vermelhas, que denunciam sangue e escondem um mistério que se perdeu com o amanhecer e com um ar cada vez mais leve.
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Vermelho no Azul
القصة القصيرةQuando o azul dá lugar ao vermelho, uma criança presencia a sua morte e recorda o sentimento que tinha quando estava com a sua mãe ou quando esta embrulhada na sua mantinha quando era bebé. When blue is replaced by red, a child sees her death and re...