Chuva, saltos e vinho

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Ao chegar na beira de uma avenida, sempre olhamos os semáforos. Afinal, quem quer morrer atropelado, não é mesmo?

E, para explicar que a minha teoria pode ser falha, temos Fernanda, uma jovem tão desatenta que sequer tirava os olhos do telefone, em dias comuns.

Depois ninguém sabe porque morreu...

Mas, por incrível que pareça, neste dia, enquanto ia ao trabalho, em pleno sábado, para levar uma papelada que exigia sua assinatura, ela deixou os fones no volume indicado, sem se colocar no perigo de estourar os tímpanos, ou se colocar na beira de um atropelamento por falta de atenção da sua parte.

E ainda pergunta porque não passa nos testes para motorista...

O engraçado, para Fernanda, foi ver a Avenida Paulista praticamente vazia, pela primeira vez na vida, visto que aquele era o único lugar no mundo com tanta movimentação que parecia os metrôs de Recife.

Entretanto, para a infelicidade de Fernanda, sentiu um pingo de chuva em seu nariz, e, antes mesmo de conseguir olhar para o céu e verificar que talvez pudesse se tratar de uma chuvinha boba, sentiu mais pingos cairem sobre seus ombros e cabelos castanhos.

Uma droga, hein?

Como se já não bastasse estar acordada às nove da manhã de um sábado, indo ao trabalho, estava atrasada e começara a chover bem em cima dela.

Fernanda corria rapidamente, equilibrando-se em seus saltos finos, quando seu celular começara a tocar "Don't stop", do Glee, piscando rapidamente o nome Marina no visor. Era a sua chefe.
Mas ela não queria atender. Não queria escutar sermão mais uma vez, por isso, deixou o celular tocar sua música favorita, e continuara a correr para o trabalho.

Sua vista começou a embaçar diante de tanta água que caia sobre si, e com aqueles saltos enormes, andava tão devagar quanto uma tartaruga.
Ela tentou correr ainda mais rápido — coisa de louco, eu concordo —, e o que aconteceu foi coisa de filme: seu salto quebrou, ela caiu no chão com a pasta em mãos, espalhando os papéis do trabalho.

Fernanda permitiu-se chorar todas e mais algumas pitangas esparramada no chão da avenida, enquanto alguns olhos lhe recriminavam, e outros até debochavam.
As desgraças já haviam acontecido, e nada poderia mudar.
Ela não tinha mais seu namorado e melhor amigo, Caio. Vivia numa fossa há seis meses. Seu salto quebrara, fazendo com que ela caísse e perdesse o contrato mais importante de sua vida, e estivesse à beira da demissão.

O que restou a Fernanda, diante de tantas lágrimas, foi procurar um supermercado e comprar o vinho mais vagabundo, daqueles que tem cheiro e gosto de acetona. Ainda no caixa, ela quebrara a boca da garrafa com salto que lhe restara, já começando a encher a cara como se não houvesse amanhã.

Fernanda gritava horrores enquanto a chuva a molhava por completo, na saída do supermercado.

Quando por fim decidiu ir para casa, enquanto vagava, bêbada, olhando para o chão da avenida, ouviu uma buzina ensurdecedora em sua frente.

Fernanda, por um pouquinho, não foi atropelada, e aquilo mexeu tanto com sua cabeça que a fez relembrar de todos os momentos importantes da vida. Um verdadeiro flashback da morte, como dizem por aí.

Quando viu que estava viva, intacta, sem nenhum arranhão, jogou a garrafa de vinho contra o pára-brisas do carro vermelho à sua frente, e gritou um sonoro "vai se foder".

Óbvio que desceram do carro. Era um homem furioso, e ela arregalara os olhos.

Entretanto, Fernanda não se intimidou com a presença do homem, e sim com o fato de ela conhece-lo.

Alto, magro, cabelos opacos e olhos acinzentados.
Era Caio quem estava à sua frente.

Fernanda empalideceu rapidamente, e todo o álcool que existia em seu corpo desapareceu rapidamente. Era ele. Era Caio.

Ele não falou nada. As pessoas olhavam, os carros buzinavam.

Discretamente, Fernanda o olhou dos pés à cabeça e rezou para que tudo não passasse de um sonho.
Mas era ele mesmo. Ele estava ali, piscando sem parar, abrindo e fechando a boca rapidamente, sem conseguir formular uma frase.

Rapidamente, Fernanda correu de volta até o supermercado, e constou que parara de chover.
Molhando todo o chão que pisava, ela seguiu para o corredor de vinhos e comprou mais duas garrafas e um salgadinho de queijo.

Fernanda tentava não pensar em Caio por muito tempo, já que ele foi o motivo de seu coração estar partido há seis meses, quando pegou suas coisas e foi embora de casa, logo depois de ouvir o não de Fernanda, na igreja.

Enquanto estava deitada no sofá, alisando a cabecinha de seu gato Fofuxo, procurou um filme de comédia para assistir, mas tudo o que encontrou foi um drama que falava sobre o reencontro de antigos amantes da adolescência, chamado O Melhor De Mim.

Perto da meia noite, logo no final do filme, sua energia se foi, e praguejou a São Pedro por ter mandado um dia inteiro regado a água. Logo depois, ouviu sua porta emitir sons desesperados, assustando-a.

Fernanda, então, pegou sua vassoura —como arma —, e foi abrir a porta com cautela.

Assustou-se quando viu a figura de Caio encharcado à sua frente, e não conseguia não olhar em seus olhos, sentindo algo dentro de seu peito, e foi aí que lembrou-se ter atirado a garrafa de vinho em seu pára-brisas.

Pressupôs, então, que o motivo de sua visita era apenas para cobrar o valor do desgaste cometido por si, e não o permitiu falar nada, o deixando parado na porta, enquanto buscava, em meio à escuridão, seu talão de cheques, dentro de sua bolsa.

Entretanto, Caio, ao ver o que ela fazia, adentrou a casa e tomou o talão em suas mãos, dizendo: "Fernanda, eu não quero seu dinheiro".

Fernanda ficou confusa com sua presença, então. Se não era para cobrar pelo estrago que deve ter feito, seria para quê? Dizer que a perdoava por deixa-lo no altar? Duvidava muito.

"E o que faz aqui, Caio?"
Esse foi o questionamento de Fernanda.
Portanto, nem Caio sabia exatamente o que fazia lá. Ele apenas seguiu seus instintos ao beija-la com tantos sentimentos misturados. E ela não se afastou.

Fernanda, apesar de ter lhe dito não, sempre o amou, mas sentia que ainda não era o momento para recitar votos na frente de várias pessoas. Por pura insegurança.

Caio sumiu por seis longos meses, e nunca fez questão de ligar para a, b ou c e dizer que estava bem, ou que estava triste. Ele sabia que chegaria ao ouvido de Fernanda, e sentia que precisava lhe dar o direito de viver a vida que escolhera, naquele momento.

Mal sabia ele que Fernanda se deu conta de que o amava cada dia mais apenas por respirar, e que não existia insegurança quando sabia que o amor por ele aumentava a todo instante.

Fernanda não tinha muito o que protestar, mas desvencilhou-se de Caio ainda com os olhos fechados, na esperança de que aquilo fosse, de fato, real.

Porém, quando abriu os olhos, viu que Caio estava mesmo à sua frente, e se perguntou, subconscientemente, se ele iria embora novamente.
E, como se tivesse entendido tudo, ele balançou a cabeça, como se dissesse que bastaria mais que um simples não para tira-lo da sua vida de vez.

Fernanda, que sempre foi metida a sabe tudo, sabia que estava se metendo numa história clichê absurdamente previsível.

Contudo, meus amigos, ela não sabia que, na manhã de um sábado, em que precisasse entregar documentos importantes na empresa, choveria tanto, fazendo-a correr, quebrar o salto, chorar, ficaria tão bêbada ao ponto de quase morrer atropelada numa avenida, e reencontraria seu ex-noivo, agradecendo tanto, no fim da noite, por tê-lo de volta aos seus braços.

Obrigada, São Pedro!

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