Plutão

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Vim andando lentamente, após descer do teleférico que me conduziu ao meu bairro. Ao longe enxerguei o pobre cortiço onde eu habitava, além de mais um montante impressionante de pessoas. Reparei a podridão das ruas, dos ratos perambulando de um lado para o outro, dos pombos negros consumindo as migalhas que as lindas donzelas da aristocracia local jogavam pelas ruas. O pior de tudo eram, no entanto, as pessoas. Sorri para um lado, encontrei inexatidão. Para o outro só reparei melancolia e impropérios que certamente não deveriam ser ouvidos por ninguém.

Tanta tristeza, para uma mente tão reflexiva suportar e digerir. O dia no escritório do jornal local havia sido um desastre, os poemas que tentei escrever não passavam de palavras desencontradas que mal encaixavam-se na métrica e a querida mulher que eu cortejava, infelizmente haveria de se casar com um rico qualquer. Nesse momento só pensava em sentar-me em minha poltrona, tomar muitas doses de qualquer bebida barata e usufruir da companhia de meu querido gato. O único amigo que eu tinha, possivelmente.

Era um lindo gato totalmente preto, austero e elegante, olhos verdes como esmeraldas e de um temperamento de paz e tranquilidade que dificilmente se vê em alguma pessoa, quiçá em um animal. Carinhoso como sempre foi, era comum que quando eu chegasse ao albergue ele já viesse enfurnar-se em meus pés, limpando todas as minhas energias ruins que tantos olhares me passavam. Meu amado Plutão.

Deus consegue se passar como um ser sádico. Quando adentrei a rua onde o albergue se localizava, senti imediatamente algo terrível. Um exemplo fátuo de mal presságio. Ignorei, continuei a andar e ao tentar adentrar o cortiço fui logo abordado por um homem, que desde sempre considerei um tremendo patife. Um idiota.

-- Vieste a perder Desdemona, huh? – retrucou com certa comédia no tom. – E não sei se você já chegou a perceber, com essa cabeça de lã, que seu querido Plutão sumiu?

Desdemona era a dama que eu tanto cortejava, que eu tanto amava e que como já citado, estava a preparar os papéis para se casar com um nobre qualquer. Mas Plutão? Eu não poderia cogitar perder meu gato. Se tal desgraça haveria de ter acontecido, entraria eu em um humor lúgubre para todo o sempre.

Transpassei a porta que dava para o cortiço e até hoje não entendo como consigo conviver com tamanha sujeira e com o caráter cadavérico que aquela república exalava. Sem pensar duas vezes direcionei-me aos meus aposentos.

Era uma morada pobre, assim como meu emprego e de todo o resto de minha vida. Mas era o que havia possibilidade de pagar. O quarto era todo atravessado por musgos e minha mobília era simples: uma mesa simples ao canto esquerdo, um armário para guardar minhas roupas, uma prateleira para meus livros, uma cama para me deitar e um suporte para os casacos.

E isolado em um local próximo à cama havia um alçapão que levava a uma escadaria, essa escadaria conduzia a uma cripta vazia, que eu usava como porão.

Sentei-me à mesa que usava como escrivaninha e abri um caderneto com encadernação de couro que utilizava como diário e comecei a expulsar as palavras.

12 de abril – Diário de Sir Jonathan Brontë. – Jornalista

Acordei sentindo a luz tênue do sol a bater contra meu rosto. Levantei mal-humorado, com minha vida, meu trabalho, minha sina. Um pequeno detalhe me retira da minha insatisfação: Plutão, meu querido gato aninhava-se junto de mim, deitado tranquilo sobre a cama. Com delicadeza, apanhei o gato da cama e coloquei-o sobre o chão de tijolos negros.

Levantei-me e vesti um casaco de couro velho e pus botas e calças decrépitas que cheiravam a mofo. Despedi-me de Plutão e atravessei a porta de meus aposentos.

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