Somniatrix

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Sob a cachoeira dos primeiros raios de sol, a vida florescia ao longo dos campos verdes daquele lugar sem nome. O gramado baixo e bem cuidado lançava seu orvalho ao mundo com a mesma intensidade de uma mãe que pare sua criança após nove meses de muito preparo e saudação.

Enquanto as flores partiam de seus brotos como leques sendo abertos e balançados ao ar, o céu estendia-se como um manto sobre aquelas campinas e era um mar no qual mergulhavam os pássaros em sua peregrinação matinal. Nada era tão fresco quanto a água lavando os solos depois de uma noite inteiramente consumida por chuvas. Os sapos pulavam nas poças da terra encharcada, causando turbilhões às pequenas comunidades de formigas e gafanhotos. Todos os modos de vida eram ativados ao som dos galos que brandiam, a plenos pulmões, o despertador das sociedades.

Não tão diferente, a mulher que escapava do celeiro esbravava o bocejo de quem acabara de acordar, cujo maior privilégio era assistir ao espetáculo da natureza na melhor fileira do teatro, tão perto que era capaz de participar com a sonora cantoria que seus pés criavam a cada passo, pressionando a grama molhada com convicção. O barro era mesclado ao mel de sua pele, enrijecida pelas tantas vezes que praticou tal ato.

O azul celeste que encontrava suas íris bailava com o cinza puro que ali habitava, transformando aquelas duas esferas em pequenos e preciosos diamantes. A mulher corria colina acima, energeticamente buscando vencer a resistência da própria subida com o leve peso do corpo enquanto as mãos grandes seguravam a barra do vestido esfarrapado, que exibia um tom vermelho desbotado em contraste ao esplendor da relva nascente.

Os cabelos, que pareciam ter sido cortados às cegas, caíam até os ombros, tão sujos que era difícil diferenciar se a cor natural era escura daquele jeito ou, se por baixo de tantas camadas de resíduos, era possível destacar um tom juvenil.

A estrela que rasgava o horizonte como a um tecido fino era uma chama ardente sobre tantos filhos perdidos, iluminando as mentes vazias e desiludidas pela inexorável implenitude da existência. Era, sem dúvidas, o astro da única peça a qual aquela pobre gente poderia ver; e, por mais que soasse banal aos demais ouvidos, não o era para aquela estranha e desajeitada figura a correr pelo morro.

Quando seus pés, em fim, pousaram no topo, sentiu-se como um pássaro, finalmente livre e recompensada por ter completado uma performance quase aérea. Com os dedos fincados ao solo e minhocas escalando suas pernas, a mulher sentou e jogou a cabeça para trás.

Os pulmões cansados pareciam bombas em descompressão; e, talvez, se respirasse fundo o suficiente, todo o ar descesse para os membros inferiores exauridos e se acumulasse ali até que ela tornasse-se capaz de flutuar céu acima.

Não havia ninguém a gritar ou ordená-la naquele momento, tudo o que experimentava era a terna doçura do vento acariciando suas orelhas e embalando-a em um quase maternal aperto.

Um pássaro que voava à distância, repentinamente, não estava mais tão longe e, a cada segundo, reduzia ainda mais o espaço que os separava, até que, sem mais delongas, pousou ao seu lado, aconchegando-se à bainha daquele trapo que usava. Para a moça e os seus senhorios, aquele não passava de um vestido mofado e à altura de uma serva, só que, aos sentidos do pequeno corvo, nada poderia ser mais macio, quente e acolhedor.

As órbitas negras da criatura brilhavam ao fitar com inteligente curiosidade a mulher.

- Sabes que não deverias me olhar, nobre pássaro, até tu estás acima de mim. - com a voz arranhada, foi o que conseguiu dizer ao dirigir uma mão tímida à penugem do bicho.

O pássaro permaneceu quieto, como se fosse capaz de entender e sentir a dor que aquele outro ser expressava com uma melancolia oculta.

- Tens o céu e a liberdade para explorar tal vastidão, além de que assusta aos homens com o seu bico. Sobre mim... Não tenho nada além de sonhos que me mantêm acordada. Até meus pés fincam-se a esta terra, como um lembrete de que jamais abrirei voo.

O vento açoitava com uma gentil delicadeza a sua face, e nada mais pôde dizer ao pequeno corvo que se refugiava no conforto de seu colo. Talvez fosse apenas por isso que ele a escutava, parado ali sob o mero pretexto de se aquecer.

O Sol parecia dançar cada vez mais como uma fogueira crepitante à beira do grande oceano azul e a grama balançava em sintonia, rodeando-a como uma aura angelical.

A mulher ficou parada naquele espaço por algum tempo, vislumbrando de modo inquieto o quanto não conseguia enxergar com sua limitada visão e o tanto que poderia alcançar mundo afora, viajando por terras desconhecidas sob o mesmo manto que a separa da imensidão das estrelas.

De repente, uma súbita inveja a consumiu de dentro para fora, como se o corpo entrasse em combustão interna. Ela encarou o corvo com demasiada revolta, questionando-se se deveria mantê-lo preso consigo apenas para ter sua companhia e evitar que ele pudesse ver e descobrir coisas as quais ela nunca seria capaz de encontrar.

A emoção foi tentadora, entretanto, violando-a com o retorno da racionalidade, os olhos da mulher marejaram em uma bolsa tênue de iminente rompimento.

- Não seria justo contigo, pássaro - choramingou, levando em conta a própria miséria. - Prender-te a esta vivência sem perspectiva, limitando sua liberdade por vil egoísmo... Perdoe-me.

Ela exteriorizou o pensamento ao encarar aquele par negro de pupilas bestiais. O pássaro se sacudiu três vezes e ameaçou afastar-se da mulher.

Demorou-se por alguns segundos, reflexivo em sua pequena consciência. Não era capaz de falar como gente, apesar de já ter ouvido humanos também corvejando de forma singular quando perdiam a cabeça.

Os olhos nebulosos da mulher perderam-se em um ponto incapaz de ser encontrado na vegetação, aquela parecia ser a deixa para que o corvo partisse em sua viagem magnífica.

A mulher repreendia-se por ter sequer levado em conta aquele cruel pensamento.

Gritos a distância a despertaram, outra vez, do cochilo tranquilo que tirava todas as manhãs naquela colina. Quando ergueu a cabeça, não viu mais o pássaro, mas pôde, quase como se fosse um sussurro, escutar:

"No mundo dos sonhos, ao menos, enxerga além do que esta campina te mostra."

E, com a lufada fresca do vento da manhã, o Sol bateu em seu rosto. A mulher levantou-se e começou a descer o morro com a água escorrendo aos seus lados em um fluxo límpido e suave.

 A mulher levantou-se e começou a descer o morro com a água escorrendo aos seus lados em um fluxo límpido e suave

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Uma Estrela sem nomeOnde histórias criam vida. Descubra agora