Azul

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O balançar ritmado em meio às águas rasas daquela baía fazia com que a descida até terra a firme fosse um pouco mais dificultosa. Mesmo acostumados com a oscilação marítima, o rum corria quente em nossos sangues nos deixando mais desequilibrados enquanto apoiávamos as botas pesadas nos degraus da velha escada de madeira.

Pousei com os dois pés na areia e dei alguns passos para trás, quase caindo; ri baixo com o meu próprio bamboleio. O álcool que Sai havia oferecido não era dos melhores, mas precisávamos comemorar pelas grandes conquistas dos últimos tempos de algum modo. Foram dois dias intensos — até atracarmos em Shikotan — regados a uma forte tempestade que quase nos fez perder tudo, e muito do horrível rum dos deteriorados barris escorreu pelo convés.

Um a um observei os meus companheiros do mar aterrissarem em terra firme, formando uma fileira desorganizada próximo ao nosso querido navio. Esperávamos as palavras do capitão para que enfim pudéssemos andar livres pela ilha; eu ainda não tinha certeza de quantos dias ficaríamos ali, mas era uma sensação agradável ficar longe da imensidão azul por um tempo.

Assim que o último homem desceu, o velho ergueu o punho e gritou. Eu, juntamente com os outros, acompanhei o brado de vitória até o ar faltar nos pulmões.

— Vamos comemorar esta noite! Façam desta ilha a sua própria casa, meus companheiros. — Disse Jiraiya com a perna esquerda, recém-enfaixada por um ferimento, em riste à sua frente pronto para dar um passo e se deixar levar pela euforia daquela noite. Os cabelos brancos e volumosos o deixavam com a aparência ainda mais amedrontadora do que o normal.

Ainda um tanto zonza, busquei de longe algum entretimento naquele lugar. As ruas estavam vazias, contudo o barulho alto vinha das construções de luzes precárias e janelas quebradas. Observei o ambiente escuro e úmido, parecido com tantos outros que eu já havia visitado.

Shikotan não era uma ilha bonita, porém eu não podia me importar menos. Não estava lá para comprar uma casa ou abrir um comércio, buscava apenas diversão pura e genuína.

— Ficaremos aqui por dez dias. Espero não vê-la até lá, Mitsashi. — Suigetsu informou com certa sinceridade na voz antes de abrir a porta de uma das bodegas barulhentas e se enfiar lá. Pude ter o vislumbre de um sorriso felino em seus lábios — sempre tão crispados — antes de se perder naquela confusão.

Resolvi me aventurar pelas vielas após juntar ar fresco o suficiente para não sentir o cheiro fétido enquanto as atravessava. A sola da minha bota, já bem gasta e desnivelada em certos pontos, ressoava como o cavalgar de um cavalo por entre as paredes, um eco tão alto que me enchia de coragem. Eu me sentia como a dona daquela ilha podre, andando com a cabeça levemente erguida e as mãos apertadas atrás do corpo.

O barulho das tavernas estava longe e não passava de um som abafado. As ondas do mar, no entanto, estavam bem altas de novo. A conhecida brisa marítima cortou o meu rosto e espantou os meus cabelos para trás; segurei firme o chapéu de couro na cabeça para que não se perdesse de mim.

Eu não havia atravessado a ilha toda, todavia parecia ter achado uma pequena faixa de areia e mar intocados pelos habitantes dali. Não havia um ser vivo a não ser eu.

Um pouco mais sóbria e encantada com a descoberta, sentei em um baque surdo. A lua cheia rodeada pelas brilhantes estrelas estava de tirar o fôlego, uma vista ainda mais bonita em terra firme e refletida pela água.

Impulsionei o corpo para trás até estar deitada, pouco me importando com os pequenos grãos que grudavam em cada partícula do meu ser e da minha roupa. A blusa de manga longa e a calça puída não estavam limpas de qualquer forma.

Posicionei o chapéu em cima da barriga e fitei o céu com mais intensidade, até sentir-me ficar vesga, flutuando em meus próprios pensamentos.

Era bom ter um momento de sossego como aquele, longe de toda a tensão que era navegar pelas águas agitadas. Estava há três anos longe de casa e algumas noites me pegava imaginando o que seria da minha vida se não tivesse largado tudo para trás. Provavelmente estaria servindo chás e biscoitos para o meu futuro marido antes de dormirmos, conversando em voz baixa com as crianças pedindo para que guardassem os brinquedos rapidamente e fingindo sorrisos para qualquer um que me olhasse. Assim como a minha mãe e as minhas tias, assim como a minha avó e a minha bisavó. As vestimentas pomposas e os lábios bem pintados, o cabelo amarrado com força no alto da cabeça e as mãos cobertas por luvas de seda. Uma sucessão de fingida felicidade e completo silêncio que não me agradavam, uma vida tão monótona e parada que me causava falta de ar.

Quase fui deserdada da minha família no momento em que coloquei os pés no navio do capitão Jiraiya; ele era um velho conhecido e quando me convidou para fazer parte da sua tripulação foi como uma traição dupla para o meu pai.

Naqueles anos navegando, havia voltado para a minha casa única vez para uma visita rápida a minha família enquanto alguns companheiros iam fazer suas vendas e trocas pela cidade. Eles ainda não acreditavam que eu havia largado tudo para trás e vivia uma vida asquerosa.

Eu tinha uma posição importante dentro do navio Coral Sombrio guiando a todos pelas melhores rotas e caminhos, ou seja, era uma Navegadora. Os mapas, bússolas e livros eram o meu oásis. Todos dependiam do meu senso de direção e conhecimento sobre o mundo para que tivéssemos êxitos em nossas missões.

Bom, eu era uma Navegadora muito competente que trabalhava para a guarda da marinha japonesa, mas ainda sim era apenas uma pirata nojenta aos olhos da minha família.

Não éramos inocentes, contudo ao menos éramos respeitados por proteger as águas orientais e — às vezes — saquear os inimigos. Era um acordo digno entre o imperador japonês Higashiyama e os marinheiros, onde os dois lados saíam ganhando muito. Estávamos em 1708 afinal, os piratas europeus e espanhóis estavam cada vez mais atrevidos tentando conquistar pedaços de terras para si e saqueando todos os navios orientais sem pensar duas vezes; os marinheiros japoneses eram um mal necessário para proteção e enriquecimento do Japão.

Bocejei alto e espreguicei-me, saindo rapidamente do meu devaneio. Sacudi os grãos de areia dos meus cabelos embolados e da blusa, em seguida observei como a lua já estava mais alto no céu. Não tinha ideia de quanto tempo havia ficado ali.

Pela visão periférica vi uma figura esguia caminhar para longe, carregando com dificuldade alguns objetos embaixo do braço. Ela seguiu até próximo da água que engolia a areia seca, deixando um rastro de bolhas para trás.

Peguei-me acompanhando o trajeto do outro único ser vivo que estava ali e percebi ser um homem. Mesmo com a distância considerável que nos separava, os ombros largos e o caminhar duro exalavam masculinidade.

Ele parecia não ter me visto ainda quando jogou tudo o que segurava aos seus pés. Espremi os olhos para entender o que estava acontecendo, de repente deixando-me levar pela bisbilhotice.

O homem posicionou uma grande tela em frente ao mar, jogou os longos cabelos para trás e depois esticou um pincel em frente ao corpo. Ele passou um tempo na mesma posição até começar a fazer movimentos largos de um lado para o outro. A mão ágil dançava em vai-e-vem segurando o pincel, ora ou outra ele parava e depois voltava o que fazia.

A vista era linda, realmente merecia ser capturada em tintas.

A minha curiosidade se esvaiu, aquela cena não mais despertava o meu interesse. Senti os olhos pesados e o meu corpo clamava por uma cama, então deixei aquele homem e sua obra para trás, decidida a me entregar ao mundo dos sonhos o quanto antes.

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