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Ad-rogação - Adoção

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Algumas experiências deixam cicatrizes em nossa história, seja para o bem seja para o mal. Eu tive o azar de muitas da segunda opção. Aos dezesseis anos, fui preso por invasão à propriedade privada e agressão. Eu me arrependo disso até hoje, não deveria apenas ter quebrado o nariz do desgraçado. Sem documentos que comprovassem meu nome e minha idade, passei algumas longas horas em um retiro espiritual chamado Delegacia. O tratamento mudou repentinamente quando descobriram meu sobrenome. Minha liberdade veio somente após vinte e quatro horas atrás das grades de uma cela, um presentinho de meu pai para minha educação. Porém, o pior castigo foi enfrentar olhar cheio de decepção do homem que uma vez fora meu confidente. 

Jamais deixei de ser grato por ter sido acolhido por uma boa família. Aos dez anos, minha esperança de ser adotado  era pífia. Crianças órfãs na fila da adoção amadurecem cedo com a rejeição, nossa infância é perdida com a esperança de que alguém um dia vai nos amar o suficiente para nos chamar de filhos. Eu já havia sido devolvido por três famílias, por mais que tentasse ser um bom garoto. Na quarta tentativa, já contava os dias para voltar ao orfanato por qualquer motivo fora de meu controle, como ocorreu em diversas fases da minha vida: ele não é muito grandinho para fazer xixi na cama? Esse moleque não interage com ninguém! Tem certeza de que ele não tem probleminhas psicológicos? Tenho medo de ele virar um psicopata! Todos conheciam o meu histórico, caso realmente se preocupassem estariam atentos ao que estava subtendido, mas nenhum deles se deu ao trabalho de realmente ler ou, pior ainda, me conhecer. É melhor viver sem filhos do que um moleque anormal, ouvi um de meus pretendentes a pai gritar certa noite, enquanto chorava atrás da porta. Eu já estava conformado que o quarto casal também se cansaria de mim em algum momento, então não tive pretensão alguma de agradá-los. Mesmo assim, surpreendentemente, dias se transformaram em meses que se logo tornaram anos.  

Somente meu primeiro nome foi mantido. Para mim, um lembrete de minha vida passada. Para meus pais adotivos, tinha um significado bíblico: Isaac, o filho a ser sacrificado, sangue inocente, salvo no último minuto. Nunca fui muito religioso, mas admito que todos esses significados me caem bem. Precisei me acostumar a não  compartilhar mais  um quarto com outros vinte meninos, ou ser obrigado a  comer somente um prato no almoço e jantar. Mesmo contra a minha vontade, passei a frequentar uma psicóloga duas vezes na semana, assim como cursinho de inglês e espanhol. Praticava judô, para minha disciplina e domar minha raiva, e estudava em um colégio de elite carioca. Meus melhores amigos já não eram mais crianças sem pais ou passado, e sim filhos de artistas, empresários renomados e políticos. A família Mendes se esforçava para que nossa relação fosse a melhor possível,  eu era o garoto de ouro deles, não importava se não tivéssemos laços sanguíneos. E então ela nasceu.

Impotente, vi minha realidade mudar lentamente durante nove meses. Não por drogas ou violência doméstica dessa vez, e sim por uma minúscula criaturinha enrugadinha e chorona. O bebê arco-íris veio ao mundo cinco anos depois de minha adoção, um pequeno milagre para minha mãe que havia sofrido diversos abordos ao longo dos anos. Embora estivesse contente por seu sonho ter sido realizado, um sentimento ciumento despertou em mim ao ver quanta felicidade uma menininha gorducha era capaz de fazer sem o mínimo esforço, ao contrário de mim. Eu havia me tornado um adolescente egoísta e, em meio a tanta alegria por causa de um novo serzinho entre nós, me afastei aos poucos. Por alguma razão estranha, todos estavam tão empolgados com trocar faldas, esquentar leite e acordar no meio da madrugada que mal se deram conta de minhas noites fora e de minhas más companhias. Até eu ser preso.

Fui rapidamente perdoado por meus pais após saberem a razão de ter sido detido, mas esse episódio mudou ainda mais a  maneira como me sentia. Já não tinha mais a sensação de pertencimento naquela casa gigante. Não por culpa deles, hoje entendo, mas o adolescente rebelde custou a entender isso. Enquanto algemas estavam sendo colocadas em meus pulsos, fui transportando para uma época muito distante, vendo uma cena semelhante, mas em um ponto de vista bem diferente. Percebi, então, que estava me tornando o mesmo monstro que ele. Talvez o sangue falasse mais alto, mas eu iria lutar com todas as minhas forças contra isso. Eu precisava de um um novo recomeço. 

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⏰ Última atualização: Dec 24, 2020 ⏰

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