- Perdoe, mas não entendi sua resposta... - A jovem encapuzada gaguejava em medo enquanto tentava esconder seu rosto, como se o pano que o cobria também servisse como uma proteção divina.
- Quem eu sou para vocês? E também... Em que época estamos? - O peso do tempo atingiu Mary como uma rocha arremessada em seu peito, lembrou agora de forma tardia o fato de seu pai estar desesperado com o seu desaparecimento e até mesmo morto pelo fato de sua ausência repentina.
A jovem encapuzada pareceu relaxar diante de tais questionamentos, ela apoiou-se em seu cajado de madeira fina, mais do que um cabo de vassoura, e trocou um longo olhar com Mary, porém, ela parecia não compartilhar o momento, se perdendo em pensamentos e questionamentos ainda maiores sobre o que aconteceu desde aquela tarde em Yahar.
- Você é a Padroeira do Desconhecido, pouco sabemos de você, mas rogam as lendas de que no dia em que despertasse, seria para purgar o mundo, preparando ele para o retorno dos nove. - A jovem agora observava os pedestais onde estavam os restos das estátuas, onde um dia as gloriosas imagens dos nove mantinham-se poderosas.
- Me perdoe, mas em que época estamos? Yahar parece ter sido abandonada desde que estive consciente pela última vez. - Mary notou aos poucos a ausência da grande população anterior, as vielas cheias de vida agora se tornavam pilastras negras entre as ruínas das casas e as constelações podiam ser vistas por completo, por não mais haver tamanha poluição luminosa da cidade.
- Estamos no amanhecer de Topul, era governada pelas grande civilização do Oeste, que a pouco menos de 210 anos tomou a cidade de Yahar e muitas outras desta parte do continente.
Mary sentiu cada ano cair em duas costas como um peso. Calculando de forma mais ou menos exata, ela deveria ter ficado petrificado por mais ou menos 240 anos ou mais. Tudo que ela conheceu neste mundo agora estava perdido, mas algo dentro de si não deixava que isso lhe fizesse sentir a dor que alguém em sua situação sentiria.
- Bom, peço então que você me ensine sobre o que ocorreu nestes anos, e como a situação dos reinos está por agora, desta forma, irei te poupar e levarei sua nobre fidelidade pela eternidade. - Mary bolou um discurso autoritário em segundos, algo que fora suficiente para cativar a jovem seguidora.
- Minha senhora... - Antes que a jovem pudesse começar seus ensinamentos sobre a sociedade contemporânea, os seguidores que haviam fugido estavam de volta, acompanhados de três homens trajados de armaduras pesadas e vermelhas, dois carregavam espadas cerradas e um deles uma besta pronta para atirar.
- Lá está, a arauta da perdição acordou! - um dos seguidores vociferou, crescendo em coragem atrás dos soldados que guiou pelas vielas abandonadas da cidade. - Ela tem uma refém!
Os outros seguidores apenas voltaram a fugir, receosos que o poder da arauta fosse grande o suficiente para dizimar eles, os soldados e parte da cidade.
- Não é o que parece! Abaixem as armas infantaria! - A jovem posicionou-se a frente de Mary e pos seu cajado em pé. Infelizmente sua tentativa de intervir fora falta, já que antes de palavra ou ação, o zunido da besta ecoou suavemente pela praça.
O dardo cortou parte da bochecha e capuz da Jovem, porém o dano maior fora em Mary, que teve seu pescoço severamente dilacerado pela ponta de ferro.
A visão de Mary ficou turva, suas mãos molhadas em sangue não conseguiam estancar o ferimento, ela pode ver a jovem virando seus olhares atordoados e os dois soldados armados de espadas se aproximando em suas armaduras pesadas. Seu corpo desfaleceu, mas antes que tocasse no chão, a constelação de Yllek desceu, tomando seu corpo e revertendo seus ferimentos.
- A divindade acordou realmente! - O último seguidor que acompanhou os soldados observava incrédulo o corpo de Mary ser envolto de luz roxa, girando próximo ao chão como se uma aranha invisível estivesse enrolando sua presa.
Em poucos segundos que seu corpo fora tomado por toda essa luz, Mary tocou o chão com seus pés, mas seu corpo havia mudado. Seus olhos antes negros agora estavam completamente arroxicados, sua pele branca agora emitia um suave reflexo de luz, os cabelos antes negros agora flutuavam acima de sua cabeça em fios brancos como a luz da lua.
- A Arauta do Desconhecido, vamos ficar famosos! - O soldado que ficou para trás agora havia terminado de recarregar sua besta. No meio tempo de sua ação, seus outros dois companheiros carregaram a jovem seguidora, levando-a para uma das paredes próximas e arremessando seu corpo contra os tijolos antigos, apenas pelo simples prazer de humilhar um ser inferior.
O próximo dardo que fora lançado contra Mary zuniu pelo ar, mas, parou bem próximo, a poucos centímetros de tocar sua testa. Em um movimento de mãos, o metal da flecha soltou e se multiplicou, formando no corpo de Mary uma armadura densa e negra, que cobria quase todo o seu corpo, exceto pela sua cabeça.
A madeira da flecha se soltou e com uma linha invisível, costurou o ferimento no pescoço de Mary que sarou no mesmo instante, deixando uma grossa cicatriz. As penas que sobraram se multiplicaram assim como o metal e se tornaram corvos negros, que zuniram mais rapido que os dardos pelo ar.
Dois dos corvos penetraram na armadura como se fossem feitas de grãos, destruindo a carne dos dois soldados por dentro, enquanto o último em um rasante preciso, escalpelou o soldado que portava a besta.
O seguidor restante agora urinava de medo em um canto escuro, trocando olhares com a divindade que o capturou em um estado além da consciência.
Em sua mente, o seguidor pode ouvir as vozes de todos os antigos herdeiros que vieram antes de Mary recitar sua piedade junto dela. - Vá e conte o que viu hoje pelos reinos vizinhos, pare apenas quando a carne de seus pés se esvazia e os ossos restantes se quebrem, e só assim não te condenarei ao sofrimento do vazio!
A jovem ao se levantar com o apoio de seu cajado, pode ver dois corvos se alimentando dos corpos próximos dela, e, mais a frente, o corpo de Mary flutuando e coordenando com gestos o seguidor a sair da cidade. Ela caminhou cautelosamente até a entidade, apoiando-se em seu cajado.
Os olhos arroxicados voltaram a ser negros, os cabelos brancos ganharam cor novamente e a armadura se desfez no ar como, areia que é levada pelo vento. Lá estava Mary, nua e com seu ferimento curado desfalecida em meio a praça da cidade.
Ao redor da Jovem e de Mary, os corvos soltaram um guincho doloroso e sumiram como fumaça. - Eu cuidarei de ti minha senhora, pois sou tua seguidora. - A jovem retirou seu longo capuz e cobriu o corpo de Mary, ela pousou seu cajado entre suas pernas e se sentou próxima do corpo desfalecido, estaria pronta para proteger ela a qualquer custo. - Não sei se está ouvindo senhora, mas me chamo Guida...