Maçãs repousavam na neve acumulada, verdes e suculentas, todas elas recém-saídas de um saco de pano sujo. O ar frio da noite de Córcova recebia a respiração agitada. Os cabelos ruivos acolhiam os flocos brancos vindos do céu. As mãos tremiam. Nem tentou recolher as maçãs.
Olhou novamente para o céu ao redor, investigando o seu perseguidor voador. Mas só havia o vento cinza e a leve chuva de neve. Um brilho alaranjado ainda se via pela janela, mas dentro da casa não havia barulho.
Catarina pegou uma chave de ferro pesada de um dos bolsos. Encontrou dificuldades para conseguir colocá-la na fechadura. Deveria estar feliz? Deveria estar ansiosa? Era o seu pai que estava ali falando, acordado. Por que então sentia tanto medo? Por que ele estava falando aquelas coisas? Que conversa era aquela?
Pensou em pedir ajuda a qualquer vizinho, mas sabia que todos tinham parado de falar com a família depois do que houvera com Frederico. Mesmo na escola, Cat sabia que Mila era tratada diferente. Os corcovás eram supersticiosos, e ter debaixo do seu teto alguém que voltou das Terras Negras era mais do que podiam suportar. Por que pai? Por que precisava cruzar o maldito lago? Que tesouro trouxe além de uma febre e um sono sem fim?
Catarina ainda podia lembrar de quando a notícia chegou até ela no mercado naquele dia. Os murmúrios sobre um homem louco que voltara num barco, sem seus companheiros, pelo lago aberto salgado, retornando de Nitéria. Cat soube que era do pai que falavam. Tinha que ser. Esperou todo o dia ansiosa, e quando a hora chegou, correu mais do que achou que era capaz para voltar a casa.
Encontrara Mila abraçada ao homem. Fred estava magro, com olheiras profundas sobre os olhos. Ainda tinha o sorriso que Cat herdara, a voz paciente... A pele era extremamente quente quando Cat o abraçou, e suas ideias, confusas. Mas seu pai estava de volta e era o que importava. Mas então ele caiu num sono sem fim...
Quem é tocado pela magia do outro lado do lago não volta, nunca volta, todos diziam. Se ele tonha voltado então tinha que haver algo errado. Cat ignorou a todos. Recusou mandá-lo para fora da cidade, recusou tirá-lo de casa. Era o seu pai, e o teria perto. Cometi um erro?
Abriu a porta e entrou.
A escuridão tentava abraçar uma alta vela sobre a mesa, com uma chama em seu topo quase apagada pelo vento exterior. Fechou a porta atrás de si e a chama solitária se manteve de pé novamente.
As sombras dançavam nas paredes e fazia com que a sala parecesse mais assustadora que o Bosque dos Gritos numa noite sem lua. Quando a visão se ajustou ao ambiente alaranjado pelo fogo, olhou para a esquerda, abaixo da janela.
Mila estava sentada, abraçando os joelhos. Sem pensar duas vezes Cat se aproximou, se agachando para notar a irmã quase toda coberta de lama.
- Mila! O que aconteceu? – sussurrou. A irmã não respondeu. Apenas encarou Cat com olhos negros como ônix. - O que houve com seus olhos querida? - sentiu um arrepio aterrorizante. Algo não estava certo.
Sentiu uma presença atrás de si e só houve tempo de se virar. Um vaso de barro se quebrou na sua cabeça, a deixando tonta. Mãos enrugadas envolveram seu pescoço e a atiraram ao outro lado da sala, e Cat foi voando pelo ar feito um pedaço de pau e bateu nas paredes de madeira. Pamela correu mais do que deveria conseguir e saltou sobre a neta, atordoada no chão.
Cat a empurrou tentando recuperar a voz para gritar mas a vó tentou mordê-la, ignorando o fato de que já quase não tinha dentes. Seus olhos eram esmeraldas frias no meio de pele enrugada e olheiras. Como ela estava tão forte assim? Como os seus olhos tinham mudado de cor? Olhos iguais aos de... Noite... Quase se esqueceu... Onde estão os lobos? O que aconteceu?
As mãos de Pam apertaram novamente seu pescoço com força. O ar fugiu com a voz. Sobre a mesa, no centro da sala, a chama da vela observava numa calma irracional. Além dela, Mila assistia com seus olhos escuros e um desenho de sorriso no rosto. Cat acenou por ajuda mas uma parte de si sentia que estava sozinha.
Enquanto uma das mãos tentou vencer a força sobrenatural da senhora Andra, a outra encontrou o caminho até o punhal em suas vestes, a sua proteção contra os bandidos na noite. Puxou o punhal e o cravou na garganta da mulher que conhecia desde criança.
Um som demoníaco saiu da boca de Mila, um agouro de dor, como se um milhão de gatos resolvessem chorar de dor ao mesmo tempo enquanto abelhas e morcegos voassem ao redor deles. Um som que invadiu seus ouvidos e pareciam perfurar seu cérebro.
Sangue quente jorrou sobre si e o corpo pesado caiu. Cat não conseguia respirar. Reuniu forças para tirar a vó de cima dela e a repousar do seu lado. Sentiu seu coração em mil pedaços aterrorizados. Era uma assassina, e sua vítima era uma idosa, a mulher que deu a luz a sua mãe. As lágrimas não vieram, mas Cat sabia que lá dentro, estava destruída.
Quando se levantou, Mila a encarava com olhos acusadores. Ela então caminhou até a mesa, pegou a vela, e a chama vacilou. Cat tentou falar, mas a voz não vinha. As pernas voltaram a tremer. Mila não tirou os olhos da irmã enquanto encostava a vela numa das cortinas. Logo o fogo se espalhou, longas línguas amarelas, descontroladas e selvagens.
- É madeira Mila, vamos morrer aqui - conseguiu finalmente dizer com uma voz seca.
- Você acabou de dar um fim na irmã dela. Não leve a mal, eram muito próximas. - disse uma voz com um tom irônico. Papai?
O homem saiu do quarto do seu pai. A luz do fogo clareou seu rosto. Era muito mais magro agora do que antes daquela viagem... Mas o sorriso, a voz...
- Pai? - Catarina era puro medo. - como você está aqui?
- Eu só tenho a lhe agradecer, garota de fogo. E sinto muito que tenha de ser assim. Mas temos uma missão e nunca estaremos livres antes de cumpri-la. E você vai nos ajudar a cumprir. - disse o homem que parecia Frederico. Ele se aproximou, com dois pontos dourados onde deveriam estar os olhos do seu pai.
- Que missão? O que tá acontecendo pai? Eu tô com medo! - as lágrimas pareciam finalmente ter encontrado coragem para sair.
- Não sou teu pai menina. Ainda não notou? - ele gritou as palavras e veio em sua direção numa velocidade sobre-humana. Cat nem teve tempo de reagir. Ele a pegou pelo pescoço e a arrastou para seu quarto.
Sobre a cama na qual ele dormiu por um ano havia agora uma bagunça de sangue e três cabeças de lobo, uma branca, uma negra e outra cinzenta. Ele a fez ajoelhar, ainda com as mãos ossudas e fortes segurando seu pescoço.
- Vê? Eu gostei do nome que você me deu. Neblina. - ele riu - mas um corpo humano é muito mais útil sabe. E o corpo da sua irmã... Mila, não é? Bom, o corpo da Mila não agradou a minha companheira, e nem a mim. Não me atrai, você entende? O seu, porém, eu gostei demais! - ele gargalhou e desceu uma das mãos até seu seio direito, apertando-o.
Cat tentou gritar novamente. Na sala as chamas ferozes estavam se alimentando de parte da fachada da casa. Sentia o calor e a fumaça. Todos morreriam ali. Ou só eu vou morrer aqui, pelas pessoas que eu mais amo no mundo. Seria assim que tudo acabaria? E nem teria uma resposta do que estava acontecendo?
- Eu não quero morrer - conseguiu sussurrar, entre lágrimas.
- Você não morrerá querida. Tenha certeza disso. - ele virou sua cabeça para cima e seus olhos se encontraram. Eram tão dourados... e malignos. Apertou seu seio mais forte. - Você viverá e desejará morrer todos os dias entre hoje e o fim. - num tom frio ele disse por fim.
Mila então veio até Catarina. As mãos de Frederico a deixaram mas ele ainda estava de pé atrás de si. Cat não disse mais nada. Viu pela última vez as três cabeças de lobo sobre a cama. Fechou os olhos e ouviu o barulho da madeira queimando e o calor das chamas violentas a beijava no rosto.
Quando abriu novamente, os olhos negros de Mila estavam bem próximos dos seus. A criança aproximou os lábios da boca de Catarina. As duas mãos de lama agarraram o rosto da irmã mais velha com tanta força que não teve escolha. Abriu a boca e Mila a beijou.
Um líquido viscoso e azedo escorreu pela sua língua e desceu lentamente pela garganta, e o que veio depois disso foi a eterna escuridão.
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Três Lobos Numa Clareira
FantasyCatarina é moradora de Córcova, cidade fria e pobre de uma das Províncias de Brasilis. Retornando para casa, encontra três lobos na floresta e leva-os consigo. Primeira história de uma série de contos passados num universo compartilhado, chamados de...