Acordou com lambidas no rosto. Sua mente pensou primeiro em Mila, mas logo se recordou. Estendeu a mão para acariciar um pelo quente, macio e meio pegajoso. Neve.
- Andou lá fora outra vez? – Cat falou, sonolenta.
O lobo branco estava todo sujo de marrom. Sua irmã dormia na cama do outro lado do quarto. Deu o nome de Neve por causa do pelo branco, mas o que ele gostava mesmo era de se esfregar na lama. O lobo lambeu novamente seu rosto.
Ele foi dado a Mila, já que era o mais jovem e brincalhão dos três. Se levantou e acordou Mila. Ela estava feliz pelos lobos. Sua vó, porém, ficou receosa e começou a delirar. Várias faces, eu posso ver, caras, muitas caras, ela dissera, mas Cat ignorou. Eram apenas delírios de uma velha... Ultimamente andava ouvindo delírios demais.
Na sala, Pamela estava sentada. Pão de trigo, chá de ervas amargas e um pouco de leite já estavam na mesa. Noite estava sob a mesa, nos pés da avó. Era o mais violento e ativo, e protegeria a casa caso alguém tentasse invadir para roubar de novo. Seus olhos verdes eram duas esmeraldas aconchegadas entre seus pelos negros como uma noite de verão.
Cat deu uma mordida no pão, tomou um pouco do chá e entrou no quarto do pai. Ao lado da cama estava Neblina, com olhos dourados e brilhantes. Era o mais calmo e maduro dos três, e também o maior, e por isso colocara-o junto do pai moribundo. Seu pelo era cinzento, como a neblina que cobria a grande estátua de braços abertos na montanha mais alta da província.
O pai continuava em seu sono sem fim, com a respiração cada vez mais fraca. Deu-lhe um beijo no rosto e passou a mão no pelo cinza de Neblina. Nem claro, nem escuro, os dois... Não, não vou ficar caindo nas loucuras de uma morta que nem sabia o que dizia. É tudo bobagem, é tudo besteira.
- Dê forças a ele Neblina – ela disse ao lobo e ele pareceu compreender. Os lobos eram mais inteligentes que um animal deveria ser.
Voltou à sala e terminou seu chá. O resto do pão ela jogou para Noite debaixo da mesa e ele abocanhou ferozmente. Despediu-se da irmã e saiu. Tinha chovido muito durante a noite e as ruas do Distrito da Lama faziam jus a esse nome. Seria um paraíso para Neve. Andou rápido. Antes de chegar à Ponte das Caras já tinha lama quase até o joelho.
A nova ponte era mais larga e resistente que a anterior. Tinha barras de madeira nos lados para se segurar enquanto atravessava. Não pôde deixar de parar e olhar para o rio. As tempestades fizeram o corpo da velha do sal se virar e agora ela olhava pra cima.
Sua face estava horrenda. Aparentemente fora devorada em parte por algum bicho. Seus olhos encaravam o céu cinza e a voz dela sussurrou secamente nos ouvidos de Catarina:
- Nem claro. Nem escuro. Mas os dois.
O coração de Cat disparou. Virou-se repentinamente e Gabrilo Limeira correu para longe. Gabrilo era um jovem amarelo e alto de 16 anos, filho de Dennis Limeira, um fazendeiro rico da área fora da cidade. Como todos os homens ricos, o rapaz Limeira se achava melhor que os demais.
- Seu idiota! – Cat gritou.
Estava longe demais para ele levar uns pontapés, e estava tarde demais para ela se atrasar ainda mais. Atravessou a ponte e entrou no Distrito das Pedras. Correu pelas ruas de pedra quebrada e chegou ao mercadão. Hoje ela iria vender frutas. O Senhor Wenderson deu-lhe um puxão na orelha e a empurrou como sempre, mas ela nada falou.
O dia passou rápido. Houveram tempestades e horas ensolaradas. Uma hora depois do pôr do sol, os últimos compradores deixaram o galpão onde funcionava o mercadão.
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Três Lobos Numa Clareira
FantasyCatarina é moradora de Córcova, cidade fria e pobre de uma das Províncias de Brasilis. Retornando para casa, encontra três lobos na floresta e leva-os consigo. Primeira história de uma série de contos passados num universo compartilhado, chamados de...