Estranhos à mesa

Algo está fora de lugar

Era o jornal. Todo dia, ao acordar, Percílio lia o jornal ainda na cama, antes mesmo de se levantar e escovar os dentes. Por isso, era seu primeiro movimento do dia alcançá-lo sobre o criado-mudo, onde certamente havia sido deixado pela empregada - um hábito diário seguido de forma quase religiosa. Mas naquele dia, o jornal não estava onde deveria estar, e isso causou um estranhamento imediato na cabeça tão cheia de rotinas daquele pai de família desafeito a desordens, que soltou um resmungo alto, daqueles de encher o quarto.

Escovou os dentes com a cabeça vazia, pois, sem a leitura matinal para enchê-la, não sabia no que pensar. Então simplesmente contemplou seu próprio reflexo durante a escovação, algo que sempre fazia de forma distraída, e notou pela primeira vez como a coloração dos seus olhos era diferente de como se lembrava. Sair da rotina tem dessas, pensou, faz descobrir coisas novas - e era isso que lhe gelava a espinha.

Jazia sobre a casa um silêncio sepulcral, e isso, pelo menos a acalmou, pois era parte da rotina daquela família acordar sobre um rígido regime de mudez e passar os primeiros minutos do dia sob uma atormentada camada de isolamento. Apesar de massageado pela costumeira falta de sons, Percílio não conteve a desconfiança que o fez parar no alto da escada e, com muita concentração, tentar prever outros possíveis desvios na rotina que encontraria ao longo da manhã. Desceu os degraus com passos fundos, tão fundos que podia quase senti-los ultrapassando a madeira. Era a forma habitual de demonstrar descontentamento antes mesmo de surgir à mesa do café da manhã: pisar com força, fazendo tremer a estrutura da casa, para alertar a todos de que não estava para conversa. Nunca estava, mas naqueles dias estava mais que nunca.

Geralmente, ao fazer isso, encontrava na cozinha toda a família de cabeça meio abaixada, evitando contato visual uns com os outros, a esposa fingindo-se distraída com o celular, a empregada de pé com um copo de suco na mão: uma família que, ao ouvir passos duros cada vez mais próximos, caprichava na harmonia com a qual o pai deveria ser recebido. Mas para sua surpresa, naquela manhã, não havia ninguém na cozinha. Isso lhe provocou, além de um novo susto, uma descarga de angústia. O café estava posto, o copo com suco foi servido e os pratos estavam cheios para ninguém. Sentiu-se quase como um ator que, ao abrir das cortinas, encontra uma plateia habitada por ausências. Em volta da mesa, as cadeiras vazias lhe incitavam algo mais próximo do pânico do que de um simples incômodo. Berrou:

- Gertrudes! Amélia!

Quando o nome da empregada era assim pronunciado, todos sabiam que o limite da tolerância havia sido ultrapassado. Nesses momentos, Gertrudes sabia que não devia estar em nenhum lugar senão aos pés do patrão. Por isso, materializou-se à sua frente, mas sem o copo de suco nas mãos, que estavam postas juntas sobre o peito como em sinal de proteção. E seu olhar desenhava o horror que a acometia.

- O que está acontecendo? Que cara é essa? - ele perguntou, tentando imprimir à voz toda a rudeza de seu espírito.

Gertrudes deu um passo adiante, encarando-o longamente com olhos assustados, e disse com cuidado manifesto:

- Seu Percílio, está acontecendo uma coisa muito estranha.

- Eu sei - ele rugiu, sentando-se à mesa - e você pode me contar enquanto me serve, para que as coisas não continuem mais esquisitas do que já estão. Antes de qualquer coisa: cadê meu jornal?

Gertrudes correu à mesa e fez as vontades habituais do patrão, embora as mãos trêmulas a tornassem mais inábil para aquilo do que nos outros dias.

- É sobre isso mesmo que eu ia falar, seu Percílio, o jornal não foi para o seu quarto por estar sendo lido por outra outra... é... outro habitante da casa.

- Meus filhos não leem jornal e minha esposa lê notícias pelo celular - ele disse de boca cheia -, então não tem mais quem leia o meu jornal a não ser eu. - Olhou para os lados, prestando nova atenção no esvaziamento ao seu redor. - Falando na Amélia e nas crianças, onde estão eles?