the last one

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Eu posso ver sua casa daqui.

A telha que quebramos no seu aniversário de 12 anos quando subimos no telhado pela diversão de assitir enquanto sua irmã mais velha gritava seus pulmões para fora nos mandando descer, ela continua ali. Assim como os desenhos que fizemos na cerca de madeira alguns anos antes, sua mãe achou adorável e decidiu não pintar por cima, a minha gritou por quase duas horas quando contei alegremente o que tínhamos feito naquela tarde.

Seu jardim continua florido, as bromélias e margaridas espalhavam-se sem padrão por todo lado do jeitinho que você sempre quis. O gramado que costumava estar em perfeito estado, agora parece descuidado e grande demais. Seu pai é quem aparava, não era?

Algumas memórias não estão mais aqui, foram embora ou enrolaram-se umas nas outras. Não lembro do meu aniversário de 15 ou do baile de primavera 1 ano depois, não lembro o porquê da primeira briga ou quem derramou a primeira gota de sangue. Não lembro mais daquele apelido que seus pais me deram no segundo ano ou como você me chamava quando namoramos por uma semana nas férias de inverno do sétimo ano. E as vezes acho que não lembro muito de você.

Na Jaemin. As vezes eu gostaria de não lembrar.

As memórias favoritas guardadas em fotos que espalhei em meu quarto na noite passada, essas sinto o cheiro de longe. Já faz tanto tempo não faz?

Eu não culpo você, eu também cansei. Cansei de me ouvir falar e das dores que sentia nas solas dos pés por passar horas tremendo na carteira da sala de aula, cansei de me abrigar e me manter quente. Se eu pudesse me deixaria sozinho também.

Posso ver a minha casa também. Casa. Palavra engraçada para descrever aquele lugar.

Casa que foi tudo menos abrigo, casa que deixava o frio do lado de fora mas que congelava pelo lado de dentro, a azulejo do banheiro, as paredes manchadas, os tapetes mal colocados, a porta da cozinha que o papai sempre esquecia de trancar e o cheiro de concreto que era apagado, sendo subtítulo pelo caos de perfumes e marcas diferentes de charuto. Casa que fez com que ao completar 13 anos eu tivesse memorizado as bebidas favoritas de grande parte dos patriarcas da cidade e as camisetas que eles gostavam que eu usasse.

A preta sem mangas, que mostrava parte das minhas costelas. Fazia com que as apostas quase dobrassem e papai ganhasse o dinheiro do aluguel do mês em uma noite.

Aprendi o quê, quando e de que maneira fazer tudo. Aprendi a deixar que seus dedos prendessem no passante do meu cinto sempre que deixava seus copos na mesa, era pior se eu não deixasse. Aprendi suas manias e a maneira que seus pés se mexiam toda vez que blefavam, aprendi seus corpos, cores e formatos. Escarlate, roxo e branco.

Meu sangue no braço do sofá, as marcas de suas mãos em meu pescoço e as queimaduras de cigarro que deixavam cicatrizes por lugares inexplorados.

Minha cabeça ainda guardava o cheiro, o gosto e a falta de alguém.

Daqui também vejo a praça em que nos beijamos pela primeira vez. Tínhamos o que? 13? 9? Sinto muito não poder lembrar mas se pudesse manteria o seu gosto para mim. Foi a única vez em que não estavamos entorpecidos, a única vez em que não fugimos logo depois.

Nessa praça também fumei meu primeiro cigarro e fodi minha primeira garota dentro do carro.

Entre balanços e escorregadores, minhas primeiras vezes brincavam como criança. Criança essa que não lembrava de ser.

Nada pode ser totalmente extraordinário, pode?

Agridoce como quando eu soquei seu rosto pela primeira vez ou quando você gritou pela primeira vez as palavras que papai me dizia antes de dormir. Nós éramos ótimos em saber como quebrávamos.

Gosto mais de nos dois quando éramos singulares, sem bagagem ou ressentimento. Gosto de nós quando tinhamos a casinha na árvore e sonhos grandes demais.

E quase gosto de quando era só eu, o eu que existiu antes do papai voltar para casa, o eu que vivia nesse apartamento minúsculo no subúrbio com a mamãe e um de seus inúmeros namorados engraçados. O eu em branco, sem histórias ou manias.

Mania de arranhar meus joelhos quando ninguém olhava, de enfiar cacos de vidro entre as bandagens dos meus dedos, de sonhar alto demais como se ainda tivesse décadas pela frente mesmo que agora tenha meus pés pendurados no parapeito do prédio que vivi por quase 7 anos.

Mania de estourar os elásticos que papai usava para amarrar o dinheiro das apostas contra os meus pulsos e de anotar minhas palavras favoritas no fundo das gavetas do móvel vazio que ficava perto da minha cama. Na Jaemin aparecia com uma certa frequência, entre uma e duas centenas de vezes, números inteiros já que quebradiços eram ruins de lidar. Assim como a rua da sua casa e a quantidade de vezes em que estive nesse mesmo lugar, 17, 18 agora, eu preferia aos pares.

E continuo passando os olhos, desenhando cada esquina e avenida, tentando agarrar qualquer sentimento que eu pudesse ter deixado para trás mas falhando miseravelmente, porque você estava ali. Ali, sentado no banco do andar de baixo, por quê?

Seu cabelo agora desbotado, quase branco, o jeito que seus dedos riscam a madeira ainda é igual. Familiar demais, quente demais, confortável demais.

Talvez tenha sido uma péssima ideia, mas não pego em uma caneta há bons meses, e mesmo se conhecesse todas as palavras do vocabulário de todas as línguas que você aprendeu não seria o suficiente. Não existem fonemas aptos para todas as desculpas esfarrapadas que você merece. E mesmo assim, com todos os anos e histórias, todos os ossos que quebramos e sentimentos que dilaceramos, desejo ter deixado uma carta.

Na Jaemin, sinto muito por não ter sido um pouco mais que o papai. Sinto muito por tirar você e colocar ele no lugar, sinto muito por ter ficado...

Sinto muito por fazer você assistir meu sangue manchar o asfalto.

Eu posso ver você daqui.

E talvez agora, que deixo meus pés escorregarem, você possa me ver também.


my city lightsWhere stories live. Discover now