Parte I

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"Querido Carlos, "

Olhei para o papel em minhas mãos. Quantas coisas eu queria despejar ali, queria despejar minha alma e toda água da tempestade que se acumulou no meu peito.

Por que ele resolveu mandar aquela carta? Estava tudo bem sem ele aqui, eu já estava até acostumada com essa ideia de não tê-lo mais para conversar, mandar boa noite e mostrar algum vídeo engraçado.

Mas então ele aparece de volta, e tudo muda. Tudo sempre muda quando ele aparece. As cores do dia se tornam outras, minha trilha sonora é obrigada a abrigar suas músicas, e meu coração se torna esperançoso. Falsas esperanças, eu sei. Ele vai sumir de novo depois desta carta que jaz no meu colo.

Pego novamente a caneta em minhas mãos, eu preciso escrever. Preciso tirar este peso de mim.

"Recebi sua carta e fico feliz que esteja bem. Ainda moro sozinha, sim. Adotei um gato e algumas plantinhas. Aquelas que você achava bonitinhas e viu no mercado no Natal, lembra? Não estou escrevendo nada novo no momento, mas é incrível saber que você está com projetos novos, espero que siga aquela ideia que te dei, o álbum ficaria bem mais legal com a foto do Max do que com aquelas listras esquisitas, haha."

Parei de novo. Não era fácil escrever com tantas memórias me interrompendo a cada palavra. Mas a pior de todas era realmente a memória de Max correndo até mim quando eu entrava no apartamento dele.

A memória de quando fomos até a ONG busca-lo ainda bebê. De quando Carlos me ligou meia-noite dizendo que não sabia o que fazer com a pequena bolota que adotou, desesperado porque Max não parava de correr e chorar.

E no final da história fui até lá dirigindo pela madrugada e descobri bem rápido que ele só estava com medo do seu reflexo no espelho. Então rimos muito e dormimos na sala, até Max também pegar no sono.

Respirei fundo e prossegui.

"Sim, estou me cuidando melhor, só compro pizza do mercado nas sextas. E até como umas batatas fritas de vez em quando, batata é saudável, certo? Enfim..."

Era agora, o momento em que responderia sobre a música.

Carlos diz que ouviu uma música e se lembrou de mim, que mandou a carta por isso, e queria saber se eu estava bem.

Vou te contar o que aconteceu, mas não diga a ninguém. Este é o segredo que deixo guardado na caixa de fotografias, que vez ou outra vem me visitar com uma intimação, é o segredo mais profundo e secreto que eu tenho pra contar. O segredo empoeirado que só retorna dos mortos na noite de Halloween ou quando ele me envia uma carta.

Há meses eu lhe disse adeus, assinando este contrato que deixaria para trás todas as memórias sobre nossas aventuras e todos os poemas deixariam de ser para ele. Seriam de outro alguém sem nome, alguém cujo nome eu inventaria e o rosto, o rosto tão dele, eu me faria de desentendida e diria não ser dele, mas de algum personagem que minha mente fez questão de criar.

Isso faz muito tempo, já não lembro mais. As estações mudaram. Não recebi mais notícias dele, ele diz ter superado, diz estar feliz e mudado.

Mas no meu lado há uma carta que por entre as entrelinhas eu posso ler, posso ler como ninguém: Eu ainda me lembro de você, ainda me lembro do teu nome e teu endereço. Eu só queria poder conversar com você.

Seguro a carta que escrevo bem forte, quase amasso.

E então a solto na mesa para termina-la. E termino:

"Que bom que se lembrou de mim com essa música. Provavelmente há mais que uma canção por trás dessa carta, mas não direi isso a você, é claro.

Sei que quer mesmo saber se estou bem, mas acima disso, queria poder falar comigo, eu que te ajudei por tanto tempo, eu que te compreendi antes dos outros, e em tantos momentos, te disse pra não desistir.

Eu também queria falar com você e saber se você está bem e como tem sido os seus dias, se Max está bem e se você ainda faz músicas pensando em mim. Porque eu ainda escrevo pensando em você.

Queria saber se você melhorou, se não tem mais tanto medo da solidão. Porque eu ainda tenho. E ainda acendo a luz de noite com medo dos fantasmas. Principalmente do seu. Mas há muito tempo ele não vem me visitar. Prometi te deixar em paz, e é em paz que quero que esteja.

Então dessa vez, o que te direi não é nada disso, o que direi é:

Deve ser uma música incrível querido, estou bem também.

Adeus, mande notícias, e não tenha medo. Você é forte e não precisa desistir.

Um abraço."

Coloco então a carta no envelope, e as lágrimas, deixo escorrerem. É apenas a vazão do oceano de memórias. Não as guardarei pra depois.

O segredo é que a cada dia mais aprendo a dizer adeus, mas que no fundo sempre me lembrarei de como me sentia. 

Querido Carlos [Concluído]Where stories live. Discover now