Capítulo 3

20 0 0
                                    

Eu não sabia o que responder. Aquilo não fazia sentido nenhum. Quando eu comecei a escrever as cartas eu não imaginava que o Davi que eu havia idealizado simplesmente se materializasse na minha frente. Eu imaginava que alguém apareceria, alguém que já existia, mas não isso. Meus lábios tremem juntamente ao meu coração, que parece ter levado algum tipo de eletrochoque. Fico paralisado por uns 2 minutos na frente dele sem entender nada.

- Leo? Sou eu o Da...
- Sim, quer dizer, eu sei mas, ...
- Eu te explico tudo na sua casa. Sua mãe não pode saber que você está aqui a essa hora, então acho que temos que correr...

Ele tinha razão. Não é hora para racionalizar nada, eu preciso chegar em casa (sem ser assaltado de preferência). Pegamos a minha bicicleta e levamos juntos até o portão do parque, em uma cena bizarramente estranha. E se um estranho simplesmente conseguiu ler as cartas na água e está aplicando um trote? Se bem que isso não seria possível, já que eu sempre desfaço elas quando as jogo na fonte. Deveria eu simplesmente aceitar esse milagre sem questionar, ser finalmente feliz? Eu queria que minha intuição me dissesse algo, entretanto minha vontade fala muito mais alto.

21:40. Tenho que correr. Combinamos de ir revezando a bicicleta já que nós dois não poderíamos ir juntos nela, o que rapidamente se mostrou um plano falho. Droga, eu estou ferrado. Davi disse para deixá-la no parque acorrentada para buscarmos no dia seguinte, e rapidamente concordei, principalmente pelo desespero (eu não sei onde ele arranjou uma corrente). O caminho seria relativamente curto se nós corressemos, o que deixei bem claro para nós não pararmos para conversar. Na realidade, eu estava mais com medo de falar com ele do que levar uma bronca da minha mãe. Isso é muito surreal. Ok, sem racionalização. Caminho, casa.

Ele tentou segurar minha mão enquanto corríamos como desesperados para alcançar os sinais, mas eu estava muito nervoso para retribuir. Uma senhora quase nos atropelou já perto de casa, redendo boas ofensas que optei por não prestar atenção. Os cabelos loiros de Davi bagunçavam-se bastante conforme corríamos, corei um pouco por isso. Já passamos pelo grafite de Morfeu, um ótimo sinal. 21:52. Quase lá.

Quando estávamos entrando no elevador do meu prédio, ouço o alarme do portão do prédio apitar para alguém chegando. Dou uma espiada e vejo: Minha mãe, com seu usual rabo de cavalo loiro, chegando do trabalho com uma cara cansadíssima. Um nó se instalou na minha garganta e eu apertei o botão do 3° andar o máximo que eu podia, até que depois de segundos eternos as portas de fecharam. Por sorte ela não nos viu, e não creio que o porteiro dirá alguma coisa, sempre está bêbado demais para se importar. 21:58. Coloco a chave na fechadura da porta e a giro na velocidade de um tigre siberiano caçando a sua presa, e finalmente estou dentro de casa. Agora, a parte mais difícil.

- Davi, entra no meu quarto AGORA!
- Ok, vou...

Ouço a barulho da tranca da porta se abrindo. Era tarde demais, ela tinha chegado.

Davi se esconde ligeiramente ao lado do sofá, enquanto eu forço uma posição de tranquilidade ao assistir a novela, já que por algum milagre a TV já estava ligada. Finjo uma serenidade inexistente quando minha mãe abre a porta.

- Tudo bem, filho?
- T-tudo, mãe! Chegou tarde...
- Eu sempre chego 22:00, querido.
- Ah sim, verdade.

Ela se movimenta para o exato ponto onde ele está escondido, me obrigando a tomar uma atitude rápida. Vou até sua direção e a abraço fortemente, então invento alguma coisa.

- Mãe, tá sentindo esse cheiro de queimado na cozinha?
- Ahn, não...
- Eu tinha deixado alguma coisa ligado no forno, mas não lembro exatamente o que... Talvez arroz?

Uma aflição a atinge em cheio. No momento em que ela corre para a cozinha, faço sinal para Davi correr para o quarto, o que faz prontamente. Vou até a cozinha para acalmar a situação.

- Ah, eu esqueci, eu tinha desistido de fazer o arroz, já que algo, er, poderia acontecer...

Depois de analizar cada ladrilho preto e branco do cômodo, ela fita meus olhos como uma águia.

- Está tudo bem mesmo!
- SIM! Tudo ótimo, muito ótimo.

Ela assente e da um beijo na minha bochecha. Estava cansada demais para se importar, logo se retirou para o próprio quarto.

Espero a sensação da poeira abaixar invadir meus pulmões já cansados da minha respiração ofegante e adentro meu quarto, trancando logo em seguida.

- Precisamos conversar.

Juntei todas as forças que me restaram depois da explosão que foi a última meia hora para encarar aquilo.

- Você é real?
- Claro que sou.
- Como eu posso ter certeza disso?

Ele me olhou com a cara que sempre me olhava quando eu estava nervoso, e isso me deixou mais nervoso ainda.

- Vejamos, seu nome é Leonardo Ávilla López, tem 15 anos e mora, bom, aqui. Nós dois sempre vamos na cafeteria da rua Calixto dividir um capuccino, mas apenas nas quartas, pois as quartas são nossos dias. Eu amo rosas, não tanto quanto amo você, porém as amo. Precisa de mais?

Ok, isso tem que ser a confirmação. Davi existe em carne e osso e está falando comigo. Uau. Eu pensei tanto nesse momento que não planejei como agir depois dele.

- Como você se tornou real?
- Eu não me tornei real. Eu sempre fui.
- Explica.

Antes de se pronunciar, ele fez sinal para eu sentar ao seu lado, e acabei consentindo. Agora éramos só nós dois e uma cama desarrumada.

- Bom, desde que você me criou na sua mente, eu ganhei vida. As suas palavras jogadas na fonte foram apenas um facilitador poético para eu me manifestar. Não é como se eu fosse menos real que você, eu apenas sou poesia, da mais pura, já que vim do seu amor mais profundo.

Aquilo não fez o menor sentido para mim, inclusive parecia uma desculpa esfarrapada, contudo eu aceitei o fato da situação não fazer sentido. Eu apenas iria aproveitar. Não sou mais o único restrito dos meus amigos, o coitado que estava destinado a estar sozinho. Eu tinha alguém. Eles não eram mais melhores do que eu. Ha. Chega a ser irônico. Eu agora tinha o amor mais especial do mundo, e eles não podiam sequer cogitar competir comigo.

Estávamos um do lado do outro. Eu estava assustado, ele calmo como um monge. Me virei para ele, ainda trêmulo. Toquei em sua cintura, gerando um sorriso automático em seu rosto. Olhei fixamente para seus olhos azuis, que faziam um contraponto com os meus, cinzas. Nossos rostos se alinharam como se fossem feitos um para o outro. Nos beijamos.

***

Eu tinha ativado o despertador do meu celular propositalmente para eu decidir o que ia fazer com Davi. Não é como se minha mãe não soubesse que eu gostasse de meninos, mas eu duvido que conseguiria explicar para ela essa situação em qualquer contexto. O acordo com o carinho no pescoço que nós sempre fazíamos (fazíamos?) um no outro, no caso de um levantar antes.

- Amor...
- Só mais cinco minutos, juro...
- Preciso te esconder da minha mãe.

Ele deu um longo suspiro, então me puxou para o chão, onde eu tinha improvisado uma cama com vários edredons, e me abraçou apaixonadamente. Eu queria que ele tivesse dormido comigo na minha cama, mas ela não é nem um pouco espaçosa. Ficamos nos agarrando, eu fugindo, depois ele, até que infelizmente tivemos que parar. Segurei seu fino rosto e expliquei a situação.

- Tudo bem, Leo, eu te espero fora da escola.
- Tem certeza?
- Absoluta.
- Te amo - disse com o tom mais doce e natural que eu pude reproduzir.

Ele foi me esperar na portaria antes que minha mãe acordasse, me dando tempo de me arrumar para mais um dia como todos. Quer dizer, um pouquinho diferente. Muito diferente.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Apr 09, 2020 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

Cartas para DaviOnde histórias criam vida. Descubra agora