O fusca de Marcos silenciou quando foi desligado, o freio de mão puxado diante do casarão de aspecto abandonado. Era uma construção enxaimel*, bastante judiada pelo tempo.
Sem dificuldade, saiu do carro levando a maleta de ferramentas, enferrujada, e parou para observar a fachada. Ao redor da casa, onde antes havia canteiros de flores coloridas e requintadas, agora havia apenas mato alto. Mas as laranjeiras ainda estavam lá, assim como a mangueira.
Colocou as ferramentas ao lado do portão e abriu o porta malas para retirar a enxada, o restelo, a roçadeira e a gasolina. Seria um dia longo de trabalho...Mas não solitário, não ali.
Quase não acreditara quando o contrataram para limpar a velha propriedade dos Muller, abandonada havia anos, desde que tinham morrido os velhos. A única filha que tiveram morava na cidade e já falecera também. No velório do casal vieram os parentes, mas da casa ninguém quis saber. Coberta de lembranças assombrosas e rangidos de madeira, ninguém a desejava. Não havia nele as cores clean da arquitetura moderna, nem cozinha americana. A estradinha de chão e o potreiro em frente também não tornavam a propriedade atraente. E a casa foi ficando, abandona, perdida no tempo como que num conto de fadas, criando espinhos ao redor.
Fora há uma semana que ligara uma parenta distante dos Muller, uma menina nova, devia ter uns 25. Ficara sabendo que Marcos trabalhava com jardinagem, queria saber se ele podia ir limpar o quintal que a moça ia lá ver a casa, talvez pra morar. E daí Marcos ficou surpreso, chocado e temeroso ao mesmo tempo. Havia fantasmas naquela casa, ao menos para ele. Mas no final das contas, aceitara o trabalho. E ali estava.
Caminhou até a área da casa, carregando seus utensílios e largou-os ali. Não ia entrar na casa. Não podia. Pegou a enxada e começou a retirar os matos num movimento constante, aprendido havia muito na infância.
Tinha limpado toda a lateral da casa quando parou e olhou para a mangueira.
Apoiou-se na enxada, tentando afastar a lembrança. Não imaginava que depois de tantos anos ainda fosse sentir tão intensamente aquele verão.
Tinha 17 anos. Trabalhava no sítio da própria família junto com os irmãos, mas naquele ano, o velho Muller precisara de ajuda com alguns cultivos, pois um de seus empregados havia deixado o lugar. Guri conhecido da região, Marcos foi logo chamado pelo velho.
Chegava quieto e saia mudo das terras em que trabalhava, com um boné escondendo o rosto sardento e o cabelo cor de areia, até o dia em que vira Carolina. Era verão e fazia muito calor. Depois do dia carpindo, o menino ia para casa já quando a menina o chamou.
-Oh, guri, não quer um pouco de suco? A tia fez, está bem gostoso. - Ela o chamou.
Ele levantou o rosto e olhou para a desconhecida. Tinha a pele corada, os cabelos negros e uns olhos de jabuticaba, redondos e brilhantes. Lembrava muito bem dela, metida num vestido bonito, limpo.
Aceitara o suco abanando a cabeça e ela se riu enquanto entregava a ele um copo.
Depois daquele dia, não ia mais na casa apenas para trabalhar. Ia para ver a Carolina... E volta e meia se via pensando nela, naqueles olhos escuros tão diferentes dos seus.
Houve um dia em que os donos da casa saíram pra cidade, pra fazer umas compras. E então, quando já ia, a Carolina o chamou da varanda outra vez.
Era da cidade, estava ali de férias enquanto os pais viajavam. E era fascinante. Ela não falava alemão, nem o português que Marcos conhecia. Falava elegante, mas não debochava da fala dele.
Naquele dia, ela o tinha beijado, embaixo da mangueira que ainda estava lá, como uma prova viva de que não tinha sido a sua imaginação a lhe pregar uma peça. Ainda lembrava do gosto de doce daquele beijo, e de como ficara surpreso, mas não recuara.
Depois daquele dia, ela de vez em quando arrumava desculpa pra passear pelas terras, arrastava-o para o meio das árvores e o beijava. O menino sabia que os Muller não iam gostar de ver aquele namoro. Nem o seu pai ia gostar de saber que ele ia trabalhar e ficava aos beijos com uma menina que nem era dali.
Conversavam sobre tudo e sobre nada e enquanto aquele verão passava, Marcos sentia cada vez uma alegria maior, uma felicidade que poderia lhe fazer explodir o peito.
Até que fevereiro foi chegando ao fim e Carolina veio lhe contar toda triste que teria que ir embora, de volta ao colégio em que estudava. Prometeu que voltava nas próximas férias, que ia pensar nele, que o amava. E foram juras e mais juras.
E aquele ano foi fácil e difícil ao mesmo tempo. Tinha a saudade doendo no peito, mas também tinha a esperança de que a Carolina ia voltar, que ia beijar de novo aquela boca doce. Não ia mais esperar, ia pedir permissão para o namoro ao tio dela, com roupa de domingo e cabelo penteado.
Quando ela chegou, no final de dezembro, era quase Natal. Mas dias antes, veio também uma carta para Marcos. Era hora de ir pro exército, tinha completado os 18.
Ainda assim, ia poder ver a Carolina antes de ir embora. Ia prometer voltar e ia pedir o namoro. Assim ficava tudo acertado e quando voltasse, casavam. Iam se ver no culto de Natal. Enquanto todos ouviam o pastor, iam se escapar para trás da igreja, e assim fizeram.
Os primeiros momentos foram beijos, as mãos lembrando os contornos de um e de outro. E depois que o fôlego acabou, ele contou. Havia tristeza então nos olhos da Carolina e medo.
Depois do dia de Natal, se viram mais duas vezes e já era véspera da partida dele. Era um dia de verão tão quente que chegava a parecer deserto. Os tios dela tinham ido na sociedade de canto para uma festa, mas ela disse estar se sentindo mal com o calor e se deixou ficar.
Naquele dia, convidou Marcos a entrar na casa. E ele lembrava do sol quente entrando pelas janelas, dos móveis de madeira escura reluzente, dos sofás e da cama coberta por um lençol tão branco.
Queria pedir o namoro naquela noite mesmo, enquanto estavam abraçados, no quarto que não era dela, mas já lhe tinha o cheiro.
Carolina disse que era melhor esperarem ele voltar. Ela estava terminando a escola, ia ser professora. Aí os pais ficariam mais tranquilos de deixar ela namorar, iam ser mais adultos, teriam um futuro mais certo.
Tudo acertado, ele partiu entre a promessa e a ansiedade pelo retorno breve. Dois anos passaram até que voltasse, no entanto. E quando isso aconteceu, foi no inverno, frio e castigado de geada. Não pudera enviar cartas à moça, porque os pais dela não podiam saber do namoro.
Fora na missa que encontrara os Muller então. O velho senhor elogiou, disse que estava bem apresentado, era agora cabo. E no meio da conversa, Marcos não podia deixar de perguntar da sua Carolina. Disse que lembrava da menina, que sempre era gentil com ele...
Houve tristeza nos olhos dos velhos e eles informaram que a sobrinha falecera. Não deram detalhes e ele não quis perguntar. Deu jeito de desvencilhar da conversa e saiu para o vento congelante.
Por um momento, não soube o que fazer, a dor ardendo, todos os sonhos despedaçados. Trancou-se em casa, chorou. E depois, a vida foi cinza.
Marcos suspirou. Não imaginava que relembraria tão bem tudo aquilo. Sequer notara entrar na casa e agora, estava sentado na cama. Ainda tinha cheiro de rosas.
Deitou-se, fechou os olhos. E pensou que Carolina já vinha.
***
*Enxaimel: Estilo de construção trazido pelos colonos alemães ao Brasil.
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O livro da memória
Short Story"Era mestre no fabrico de memórias. Ninguém as tecia como ela. Poucos tinham a capacidade de armazenar pequenas tolices cotidianas transformadas em poesia. Ela conseguia." Trecho do conto "Fabricantes de memórias" As recordações fazem parte de qu...