Capítulo 1

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- Aninha, meu amigo quer te conhecer. – Talita gritou no ouvido da amiga. O barulho era tanto que ainda assim parecia uma confidência.

- Não estou afim. Hoje não, Tatá! – respondeu Ana, caminhando em direção á saída, onde a música diminuía o volume.

- A gente não vai embora ainda, volta aqui. – Talita puxou Ana pelo braço.

- Tá louca, sua vaca! Me solta. Eu só vou tomar um ar. – E caíram na gargalhada. De longe poderia parecer que elas estavam brigando, mas estavam sempre assim, se divertindo enquanto se estapeavam. – Me solta, sapatão! Vai dançar. Eu já volto pro baile.

O som alto do baile silenciava os próprios pensamentos.

- E aí, gatinha? Bora levar umas sarradas hoje? – perguntou um playboyzinho que sempre subia o morro acompanhado de várias garotas brancas. Se ele já tinha todas aquelas branquelas, porque queria sarrar na pretinha? Ana pensou rapidamente em confrontá-lo. Mas apenas sorriu educadamente. Por dentro ela tinha pena do tipo de pessoa que ele deveria ser.

- O quê a santinha veio fazer no baile? – provocou uma outra menina tatuada de cabelo curtinho, chamada Aline.

- Vai cuidar da sua vida. – Ana havia raciocinado, repassado essa cena em sua mente várias vezes, ensaiado, mas a reação não estava automatizada. Ser insultada pela garota que infernizou todo seu ensino médio levou embora a serenidade. Parece que o bom da proximidade com o paredão é o fato de ninguém realmente se escutar.

- Oi, boa noite! – cumprimentou um rapaz que também saía do baile, e encostou pra fumar um cigarro. Ele não merecia uma resposta.

Ana Vitória voltou pro baile, pra tentar esquecer de tudo, inclusive daquele baile. Quando esse pensamento passou pela sua cabeça foi impossível controlar o riso. As vezes ela se perdia na própria mente e tudo parecia mais divertido, seguro, e as vezes mais cruel. Talita estava lá, mas nem sempre. Neste exato momento estava se esfregando em um carinha tatuado, atrás de umas caixas de cerveja. Mas tudo bem. Ana dançaria sozinha mesmo, curtiria seu paradoxo particular. Que foi interrompido pelo DJ.

- Joga a luz naquela menina lá. Isso mesmo naquela neguinha, que está de jaqueta preta com rosa e o cabelo amarrado pra cima. Hoje ela é a menina do sorriso mais lindo do baile. E essa música é pra ela.

Ana sentiu que o foco de luz ficou sobre ela, que olhava tentando entender o que estava acontecendo até ouvir a capela sample do MC:

"Tem que fazer o quê / Pra te beijar?"

"Tem que rezar, / que rastejar, / que implorar?" – a galera respondeu a plenos pulmões. E o batidão recomeçou, todo mundo repetindo o refrão.

Ela já havia ouvido essa música antes, já estava se espalhando pelo morro. Era melhor do que qualquer "senta na piroca". Não que sentar na piroca fosse algo exatamente ruim. Mas quando o cara entende que não pode chegar de cara te beijando já eleva ele a uma posição melhor no teu conceito.

Especialmente quando comparado com os caras que acham que tua única função na vida é sentar na piroca deles. Como se você não precisasse estudar, trabalhar pra ajudar nas despesas da casa, cuidar dos irmãos, maratonar séries, escrever teus livros pra publicar no wattpad, ler os livros das coleguinhas, aprender tutoriais de make no youtube, rir da falta de noção das blogueiras... nada disso. Sua vida se resumiria em sentar na piroca deles.

Agora tinha uma música bacana. Agora, ironicamente, no próprio baile nascia uma chance de dizer "não".

Quanto mais pensava sobre isso, mais Ana Vitória sorria, e mais curtia a batida. O DJ perguntou no fim da música se ela queria ir até a mesa de som, ela acenou que "não", e fugiu do foco de luz, se perdendo no meio das outras pessoas. Foi procurar por Talita, mas não a encontrou. Quando se deu conta já estava rolando o proibidão. Era hora de voltar pra casa.

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⏰ Last updated: Mar 23, 2020 ⏰

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Tem que fazer o quê pra te beijar?Where stories live. Discover now