Sem heróis nas padarias

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Desde que o Rasgo se fechou perdi as esperanças de obter respostas.
Talvez os poderes viessem de um outro planeta, ou de uma anomalia astronômica, ou até de um ser superpoderoso que os forneça a todos, mas aí de onde vem os poderes dele? Quais seus limites? Ou só nós éramos limitados? Ele está nessa dimensão? Ele respeita leis da física e química? Será que eu respeito?

Brilhas... estava divagando... fico assim nesses momentos. Eu ia andando até a padaria mais próxima sem nenhuma música ou podcast porque perdi os fones de ouvido na mudança... e estava com sono, cara, como eu estava com sono...

Nem era tão cedo assim, mas minha vida estava uma bagunça e o Gabi, o Mago de Ferro (ele tirou o título essa semana), acorda muito regradamente nesse horário. Eu não queria ser um peso como hóspede, então resolvi que meus horários seguiriam os da casa enquanto eu estivesse ali.
Admito que não sou muito matutina, saí de casa meio que usando pijama e tênis de tanto sono, podia ter levado mais 5 minutos trocando o moletom por um jeans, né? Pelo menos prendi o cabelo. A padaria não era exatamente perto então vou dizer que economizei o tempo de trocar de roupa para trazer o pão mais cedo. Eu tive que andar até a avenida, mas pelo menos dessa vez não estava quente demais. Tinha dias que eu queria sair por aí vestindo só meu pingente, ou passar o dia na piscina.
Quando cruzei a praça já pude ver que ia pegar fila. Tinha gente nas mesinhas em frente e pela entrada lateral vi um casal saindo, e outro, e outro e mais um senhor idoso e altíssimo. Que preguiça de tudo isso, já disse que estava com sono?
Entrei por lá e já achei os pães que queria, peguei um pacote e fui atrás da encomenda do Gabi. Broa de milho, daquela feita com anis. Eu odeio anis, acho que foi o Rasgo que fez ele gostar disso, deve fazer parte do pacote; ter o corpo transformado em metal, ganhar poderes de ilusão e levitação e em troca perder o paladar. Poderia ser pior, como ter que comer beterrabas cozidas para sobreviver. Beterrabas ganham de anis, com certeza... mas até hoje eu não conheci ninguém que teve sequelas ou efeitos colaterais por ganhar poderes.
Sabe, essa parada do "Rasgo na realidade" e poderes era pra ser um mundo fantástico de super-heróis, mas com o tempo fui conhecendo o pessoal e desistindo dessa visão. No laboratório, Maria Helena, a Alquimista, mudava propriedades de elementos com base no número atômico, o Tocha, acendia nossos bicos de Bunsen... no fim éramos pessoas normais com algum detalhe especial... era como se um soubesse tocar musica e outro desenhar bem, ou ainda como se tivesse os olhos de uma cor que ninguém mais tem. Eu me sentia assim. Até aprender a usar meus poderes para ajudar em testes químicos eles eram como olhos púrpuras, ter olhos diferentes é legal, mas eles não servem para nada prático. Era diferente dos classe 4 ou 5 etc... eles sim tinham alguma chance em combater o crime, e muitos até estavam na polícia da cidade, o que devia reduzir a criminalidade em teoria, mas, na prática, só gerou uma policia dividida entre poucos heróis e muitos policiais resignados. Eu era só uma classe 1, com um único poder e bem limitado.
Enquanto esperava para ser atendida no balcão um sujeito magro e baixo com camisa de banda me pediu licença para pegar uma caixa de leite que eu estava bloqueando.
— Armazém cheio hoje, né? — ele meio que se desculpou, meio que puxou papo. Eu estava um pouco irritada naquele momento, pra ser bem honesta, então vamos culpar o sono e também a frustração profissional.
Resmunguei uma resposta ininteligível para o sujeito, embora o lugar se chamasse de "Armazém Alguma Coisa" era claramente uma padaria. Até isso me frustrava, as padarias que se dignavam a chamar assim ficavam todas na parte sul da cidade. A frustração maior, é claro, não tinha nada a ver com os estabelecimentos da cidade e sim de ter me formado tanto numa carreira quanto numa universidade onde todos tem superpoderes e estar ali, desempregada, com sono, morando de favor, sem rumo, e pegando fila na padaria. Ninguém espera ver heróis super poderosos na fila do pão... mas é claro que isso devia acontecer, afinal os quadrinhos de super heróis foram inventados antes do delivery e a internet começarem a namorar. E eu não era tão super assim, mas dava pra dar um desconto, né? Ia ser pesquisadora antes da universidade fechar, isso deve contar uns pontos.
— Você é daqui, moça? — O rapaz da camisa de banda insistiu. Devo ter demorado um segundo pra largar meus pensamentos e reagir. Ele aparentava uns trinta e poucos anos, mas usava barba dando imprecisão a esse tipo de estimativa.
— Não, me mudei ontem... — respondi olhando para o atendente que servia um croissant à senhora na minha frente.
— Ah, tem um sotaque diferente mesmo...
Eu tinha sotaque diferente porque eu vivi a vida toda em São Paulo e só fui parar na Ilha do Marajó nas férias da faculdade, mas lá acabei transferindo o curso para a Uras, após ter sido "escolhida" pelo Rasgo para ser afetada. No inicio estava toda ansiosa com o fenômeno, mas quando aconteceu comigo mudei bem rápido de ideia.
— Sou de São Paulo, mas estive os últimos 3 anos por aqui, acho que só não convivi tanto com o sotaque de cá — por que eu estava tagarelando? — ou o pessoal daqui talvez não quisesse falar muito com a gente.
— Imagina, é sempre um prazer conversar um pouco pela manhã, não que meu sotaque seja daqui também, sou de Minas — ele estendeu a mão — Felipe.
— Michele. — Acho que sorri, sei lá.
— Veio a trabalho? — ele insistiu, "Que horas você sai?" ou "Quer tomar umas mais tarde?" foi o que ouvi.
— Não, ainda não pelo menos, acabo de me formar na Uras. — Os olhos do rapaz se arregalaram, ele fez menção a qualquer coisa entre se virar e fugir ou me encarar com duvida sobre o que eu dizia. No fim optou por algo que parecia uma convulsão seguida de petrificação.
— Aaaah, você é um... uma... hã.... tem poderes? — me segurei pra não bufar e respondi como se nada demais estivesse acontecendo.
— Sim, cursei química lá antes do Rasgo fechar...
Fui interrompida pelo atendente e pedi finalmente a broa de milho. Fingi não ver o rapaz se retirando de leve com sua caixa de leite enquanto eu adicionava um salgado de frango ao pedido. Infelizmente há um limite de quanto se pode enrolar numa padaria de vinte metros quadrados cheia de gente e fui dali para o caixa antes que o rapaz pagasse suas coisas e saísse.
Não reparei a tempo num outro cara que entrou na padaria. Quando o vi parecia dar uma olhada no tamanho da fila e decidir se ia mesmo pegar algo ou deixar para comprar depois, mas aquela cara de indecisão e olhar perdido logo se explicaram quando ele sacou uma arma escondida no casaco.
— Isso é um assalto, todo mundo pro chão! - Ele gritou.
Todos obedeceram, eu inclusive. Ele ia roubar as pessoas e iria embora, já passei por isso em São Paulo quando era mais nova, era só ninguém reagir que tínhamos boas chances de não haver feridos. Além disso, eu não fiz aulas de luta, meu plano era trabalhar na indústria química com pesquisa. Gabi saberia o que fazer, ele sim treinou artes marciais, manobras, táticas e essas coisas. Ok, ele me mostrou umas coisas, nos divertimos aqui e ali, mas isso não me qualificava.
O assaltante foi em direção ao caixa e alternava seu olhar entre ele a os reféns que se amontoavam no chão. Meu olhar caiu perto do balcão sobre o sujeito que falou comigo, esperava encontrar um olhar aterrorizado ou acusador cheio das frases que ouvira durante a graduação toda quando saíamos do campus "pois essas coisas acontecem sempre com quem tem poderes!" ou "Não é seguro ficar perto deles!". Teria sido melhor ver isso na verdade, pois o que encontrei um rosto sério olhando para o bandido e uma mão que ia devagar para as costas da calça, onde nessa posição pude ver um volume quadrado. Ele também estava com uma arma! Que imbecil completo anda por aí armado até pra ir na padaria?
A bronca podia ficar para depois, evitar o tiroteio entre os dois idiotas era a prioridade.
Aparentemente, como eu tinha dito, ninguém espera ver heróis super poderosos na fila do pão, porque quando eu me levantei o assaltante apontou a arma pra mim e insistiu que eu me abaixasse. Talvez tenha achado que eu estava em choque, ou que só não entendi o que ele falou, mas ficou ele mesmo sem reação quando me olhou melhor e ouviu falar controladamente.
— Eu sou Aspecto — franzi o cenho encarando ele com meu apelido de faculdade, tinha ensaiado no espelho para um momento desses antes de achar que nunca teria chance de agir como uma heroína — Uras. Cai fora.
Não foi muito esperto de minha parte fazer isso, mas se alguém ia fazer uma burrice ali melhor que fosse eu. O rapaz da camiseta de banda pareceu desistir da arma, e o assaltante não pareceu perceber meu olhar para verificar isso, mas deve ter percebido que eu estava me tremendo toda e suando frio.
— Qual é, gordinha? Acha que me engana, deita aí — ele gesticulou com a arma para me abaixar.

Sem heróis nas padariasWhere stories live. Discover now