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- O Novo Governo é legítimo e foi instituído por pessoas e para as pessoas, de forma que este ataque a um amigo tão querido não passa de um atentado terrorista e será processado ao máximo rigor da lei. Hoje teremos uma cerimônia…

A voz de Sardes ia ficando cada vez mais distante dos ouvidos de Cas, que murmurava as palavras ao passo que a Líder as recitava, lendo de uma TV à sua frente. O discurso levou Cas poucos minutos para escrever, mas a cada letra que ela digitava, a dor que sentia se agravava. Ela sabia da verdade, sabia o porquê de tudo aquilo, e se tudo continuasse da mesma forma, em algumas semanas seria o corpo dela numa sarjeta qualquer. 

Ela era bem mais nova quando a Líder ascendeu ao poder. Seu tio já trabalhava na agora falida Organização das Nações Unidas, que serviram de degrau para Sardes instituir o Novo Governo. E foi por conta de seu tio que ela conseguiu um emprego na parte corporativa e, depois, foi trabalhar diretamente com seu tio. E ela amava. Ele a ensinou tudo o que ele sabia sobre imprensa e informação. Não há formação acadêmica que supere o que Cassie aprendeu com o amor e dedicação do seu tio pelo trabalho. 

E o que ela aprendeu que se recebe em troca quando se desvia do caminho que Sardes traçou pra você. 

~****~

4 anos antes. 

As gotas de água quente caíam rápidas e grossas sobre a cabeça de Cas. Percorriam todo seu corpo, caíam no chão e, unidas, seguiam para o ralo. Elas conseguiam mascarar por completo as lágrimas que desciam de seus olhos para se unir às gotas que caíam do chuveiro em direção ao encanamento que as levaria para longe. 

Ela chorava, mas não era de tristeza. Toda vez que ela se sentia nervosa, seu corpo produzia lágrimas e mais lágrimas. Era constrangedor e ela detestava. Mas no chuveiro ninguém saberia, então ela deixava suas lágrimas correrem e seguirem seu fluxo.

Ela se secou, colocou a roupa e o perfume e desceu no elevador para o lobby de entrada do seu prédio, onde um porteiro a acompanhou até o carro com um guarda-chuva grande e vermelho, com a insígnia do hotel em dourado. Muito glamour para pouco tempo de aproveitar. Ela agradeceu com um aceno de cabeça, já dentro do carro. O motorista a cumprimentou por detrás de uma barreira de vidro. 

Era compreensível que as pessoas não estivessem se falando muito. Estavam todos ainda de luto por todas as perdas. 

Semanas antes, a doutora Volusious, diretora geral da Organização Mundial de Saúde, anunciou que a última pessoa não-imune ao vírus que tomara conta do mundo inteiro havia resistido ao tratamento e acabara de morrer. Sentimentos mistos. Isto representava o fim de uma pandemia global com uma taxa de mortalidade recorde. Mas também era mais uma morte para alimentar as estatísticas e as pilhas de corpos. 

O mundo estava em colapso. Cidades inteiras haviam sido dizimadas, transformadas em valas para cremação em massa dos infectados. A economia enfrentava a maior recessão desde a quebra da bolsa. As pessoas que restaram haviam desenvolvido imunidade ou se mantido longe o suficiente de tudo e todos para esperar a crise passar. Muitos dos quais eram ricos.

Enquanto a chuva castigava o carro, Cas encarava o lado de fora pela janela, refletindo na fragilidade humana. Todos estavam desesperançosos e com medo. Não era pra menos, afinal a pandemia havia sido fruto de uma guerra biológica travada entre os EUA e a Rússia. Algum biomédico norteamericano descobriu um vírus letal que era capaz de sofrer mutações tão rapidamente quanto infectava novos hospedeiros. As coisas saíram do controle e o que deveria ser um ataque isolado ao líder de governo do país inimigo se tornou o maior ato de terrorismo da história. Não havia uma cura para a doença que era capaz, em casos graves, de matar o doente em dois dias. Enquanto pesquisavam por uma cura, quem não era imune, morria. E a imunidade era tão aleatória quanto o contágio. Ninguém sabia de onde vinha e para onde iria. Cas era imune. E ela mesma não entendia o porquê seus pais não o eram. Vê-los morrer, ainda no começo da crise, sem poder se despedir. Apenas a lembrança ainda a fazia tremer.

Cas descartou os pensamentos com um balançar de sua cabeça e percebeu que, finalmente, estava chegando ao seu destino. Em momentos em que a história está sendo escrita, tudo parece grandioso demais. Mas Cas sabia que este momento seria para sempre lembrado.

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