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 Quando voltei, Amira estava terminando de descascar as batatas. Me senti culpada por deixá-la fazer quase todo o trabalho sozinha.

— Desculpe por demorar. Pode deixar que eu cuido do resto.

— Não, não e não! — Ela protestou com veemência. — Não vou deixá-la fazer tudo sozinha! Quero retribuir a gentileza de ter me acolhido e me desculpar por você ter arrumado problemas com aquele rapaz.

Decidi não insistir. Peguei outra faca e juntas terminamos rapidamente. Colocamos as cenouras e então era apenas esperar a sopa ficar pronta.

— Serene, quem era ele?

— O filho adotivo da bruxa. O nome dele é Avren.

— Que nome diferente.

— Sim. — Dei de ombros, sem me importar.

— Sei que não nos conhecemos e não faço ideia de como vocês se comportam, mas mesmo assim quero dizer uma grande besteira, se me permite.

Fiquei em silêncio, esperando pela conclusão dela.

— Ele gosta de você.

Levantei da cadeira fingindo que ia olhar a sopa, porém a princesa segurou meu pulso.

— Tenho certeza de que a sopa está longe de ficar pronta — contestou, me fazendo voltar a sentar de frente para ela. — Avren com certeza gosta de você.

— Você não viu o quanto ele gritou comigo? É o passatempo favorito dele. Sempre sou o alvo para isso.

— Geralmente descontamos nossa raiva ou mau humor em quem podemos ser nós mesmos, não acredito que tenha feito por mal.

— Como pode ter certeza?

— Antes de você chegar, ele ficou paralisado na porta da casa olhando para todos os lados. Perguntou quem eu era, como tinha entrado e quis saber onde você estava, então respondi e mostrei o colar da família como prova — explicou com naturalidade, como se aquela confusão toda não tivesse acontecido. — Avren até ia dizer mais alguma coisa, porém se calou ao ouvir seus passos de volta. Admito que fiquei apavorada com o que aconteceu depois, no entanto ele poderia ter feito isso antes comigo, afinal não faria diferença.

— Viu o que eu disse? — Uma faísca de fúria acendeu em mim — Se ele já tinha falando com você antes, por que gritaria comigo daquele jeito? — Amira ia dizer alguma coisa, contudo a interrompi por estar perdida nos meus devaneios de raiva — Porque é o que Avren adora fazer, como te disse! É cara dele fazer isso! 

Soltei um suspiro pesado e voltei ao normal. Ao lembrar que tinha falando daquele jeito com a princesa bem na minha frente, fiquei com uma pontada de vergonha.

— Desculpe por ter ficado irritada assim. Bom, ao menos sei que é impossível ele realmente gostar de mim depois de fazer uma coisa dessas.

— Pode não ser possível agora, mas quem sabe no futuro? Sabe, coincidências não existem e, se vocês se encontraram, talvez seja um sinal de que terminarão juntos — afirmou, com um pequeno sorriso. — Nem todos os casais começam às mil maravilhas.

— Talvez... — balbuciei enquanto ia ver o estado da sopa e Amira não me impediu na segunda vez. 

Se até ela estava afirmando aquilo então poderia ser verdade mesmo e não mero impulso daquele estressado pelo momento? Se fosse, por que todo aquele espetáculo desnecessário? Será que era para eu aprender a lição e ficar mais esperta? Todos esses pensamentos só me deixavam mais confusa ainda.

Tomamos a sopa em paz e completo silêncio, no entanto fomos surpreendidas com ele entrando na casa enquanto carregava uma rede com vários peixes e algumas aves cujas espécies não reconheci. 

— Como você arrumou tudo isso?

— É uma longa história. Apenas me ajude a salgar, não podemos nos dar ao luxo de perder um único grão disso.

Trabalhando em três, terminamos tudo mais depressa do que o previsto. Avren disse ter pegado a comida de um pequeno barco que navegava pelo rio sem rumo e cujo dono terminava de agonizar pelas flechas cravadas em boa parte do corpo. Como usava um manto, provavelmente foi confundido com um bruxo e então assassinado.  

— Isso não me parece nada bom...

— Foi uma sorte única na vida, não é justo desperdiçar. Estou cansado de viver de sopa. – Ele fez uma careta para a panela, mas acabou por pegar uma parte enquanto Amira e eu dávamos um jeito de guardar tudo nos armários.

A princesa se ofereceu para lavar os pratos e não quis ouvir protestos. De acordo com suas palavras, "títulos de nobreza só servem dos portões do castelo para dentro", então ela deveria ser chamada apenas pelo nome fora deles, pois bem ou mal era uma pessoa como qualquer outra. 

 Avren e eu não conversamos, embora estivesse inquieta para tirar satisfação do que aconteceu mais cedo. Pensando melhor, era melhor deixar para lá. Ele estava imerso em pensamentos e sem sinal de um novo ataque de raiva, o que me deixava em paz até haver outro motivo para brigarmos.

O primeiro bocejo da noite foi dele, que saiu para nos deixar tranquilas, como sempre fazia. No entanto, pela primeira vez vi a sombra dele perto da casa. Ofereci a cama para Amira e insisti para que aceitasse, pois me encontrava sem sono e não tinha problemas em ficar na cadeira. Peguei um cobertor da gaveta e me enrolei nele por estar mais frio do que de costume. Desejei boa noite para ela e logo pensei em Avren do lado de fora. 

Com a manta que antes era dele em mãos, fui para o lado de fora, recebendo uma lufada e ar frio que me fez estremecer. Ao olhar para os lados, o vi recostado na parede perto da porta, logo abaixo da janela. Estava dormindo e me aproximei com cuidado, colocando o cobertor sobre ele sutilmente, mas foi em vão.

— Me desculpe por te acordar.

— Vai pegar um resfriado se ficar aqui fora.

— Você também — respondi, terminando de ajeitar a manta sobre ele, que não protestou.

— Estou acostumado, já sobrevivi a temperaturas mais baixas. Mesmo assim, agradeço por se preocupar comigo.

— Não precisa ficar aqui fora.

— Eu insisto. Quero que vocês durmam em paz.

Não pude dizer mais nada, pois Avren se aninhou no cobertor e logo voltou a dormir. Pelo menos não ficaria preocupada e poderia me concentrar em pegar no sono. No entanto, ao sentir a atmosfera quente da casa, senti remorso imediatamente por pensar nele no frio.

Coloquei o cobertor que estava sobre a mesa em minhas costas e retornei para o lado de fora. Não tinha muito ideia do que eu mesma estava fazendo, mas decidi que não o deixaria sozinho e também daria privacidade a Amira. Além disso, aquela cadeira iria me deixar com uma dor nas costas insuportável no dia seguinte, não adiantava mentir para mim mesma. 

— Sua teimosia vai lhe custar caro no futuro.

Ouvi o sussurro de Avren ao mesmo tempo que sentia um peso a mais sobre mim e minha cabeça apoiada em algo sólido. Abri os olhos devagar, notando o cobertor dele sobre mim e seus braços em torno da minha cintura enquanto a cabeça estava apoiada em seu peito.

— Você...

— Fique quieta e durma. Já disse que estou acostumado a temperaturas mais baixas do que essa. — Ele me interrompeu — Além disso, você estava tremendo feito vara verde de tanto frio.

— Obrigada.

— Agora trate de me deixar dormir de uma vez.

A respiração dele estava começando a se tornar profunda outra vez. Avren não parecia incomodado com a situação, do contrário não dormiria com tanta facilidade. Quanto a mim, senti meu rosto queimar e me arrependi por ter tido compaixão. Se bem que, parando para pensar, a culpa era minha por querer dormir do lado de fora sem estar acostumada igual a ele... De qualquer forma, não adiantava lamentar.  O que restava era tentar dormir novamente ouvindo seus batimentos suaves e sendo aquecida por seu calor. 

O Último CorvoOnde histórias criam vida. Descubra agora