25

369 46 1
                                    

 A fogueira estava no fim. O fogo perdera a força e começava a se apagar com o vento frio de outono, que levava as cinzas de Mildrith Westshine para longe. Alfred, atormentado, se aproximou do palco quando todos estavam partindo. Ainda conseguia ver o fantasma de sua esposa ali, gritando e agonizando enquanto seu corpo era envolto por chamas. Por um instante, pensou nas palavras do garoto e se pegou duvidando de toda sua crença. Se não tivesse sido tão submisso, sua filha não teria fugido por ser obrigada ao casamento, sua companheira estaria viva e teriam continuado como uma família normal, sem desgraças.

— Entendo que está em agonia agora, irmão, mas se livrou da vergonha e da feitiçaria.

Alfred não respondeu. Sequer virou-se na direção de Brasjen. Engoliu em seco, sem vontade de ter alguém ao seu lado naquele momento, principalmente o homem que condenou Mildrith à fogueira e sentenciou Serene à morte.

— A culpa é minha.

O cardeal olhou para ele, com as sobrancelhas franzidas e deixando as rugas de sua testa aparentes.

— Do que está falando, irmão? Você não teve culpa por nada.

— Sou culpado sim. Se cuidado da minha família direto, as coisas teriam dado certo.

Brasjen colocou uma mão sobre o ombro de Alfred.

— Tudo vai acabar de uma vez, apenas confie. Meu filho vai lhe trazer a paz de que precisa.

— Matando minha filha? Isso não me trará paz de forma alguma.

— Não há outra maneira. Serene recebeu diversas chances e trocou tudo pelo corvo. Todos nós tentamos, inclusive Mildrith.

Alfred suspirou, sem dizer mais nada. Deu uma última olhada nas cinzas que acabavam de se dissipar com o vento enquanto pensava no que o rapaz havia dito, sentindo arrependimento por ter dito tudo aquilo para Serene. No entanto, era tarde demais para pedir desculpas.

— Irmão Alfred Westshine. — O Segundo Cardeal lhe chamou a atenção — Ainda está conosco nessa causa?

— Não sei mais, Vossa Eminência. Preciso de tempo para alinhar meus pensamentos.

— Tempo não é um luxo que podemos ter, irmão. Aconselho que tome uma decisão o mais breve possível.

---

— Serene, está tudo bem. Estou aqui com você.

Era a terceira vez que eu acordava com a imagem da minha mãe queimando até os ossos. O corpo todo tremia e os nós dos dedos estavam brancos pela força com o qual segurava o lençol. Avren continuava ao meu lado, me envolvendo em um abraço apertado e protetor, fazendo com que, de alguma maneira, ficasse mais calma.

— Eu te disse que não era uma boa ideia ficar lá.

— Não acho que seja um bom momento para você jogar isso na minha cara.

Ele se levantou, indo em direção à cozinha. Não sabia quais eram suas intenções e tratei de segui-lo algum tempo depois, visto sua demora para retornar. Logo, o vi colocando um líquido de cor lilás ainda quente em uma xícara. Tinha cheiro de erva doce.

— É um chá que a velhota costumava fazer para mim no começo, quando eu ainda tinha pesadelos com meu pai e não conseguia dormir — explicou. — Trata-se de uma mistura de erva doce com lavanda e essa coisa que ela usava, porém não sei do que se trata. — Ele apontou com o queixo na direção de um frasco com um líquido roxo.

O gosto não era ruim. Na verdade, não tinha gosto de nada, parecia até água. Talvez fosse por causa daquele líquido desconhecido, mas não importava. A única coisa que eu queria era que aqueles pensamentos desaparecessem pelo menos durante a noite. Me deitei novamente, na esperança de conseguir dormir algumas horas a mais sem ser interrompida por nenhum sonho.

---

Acordei com os raios de sol incomodando meus olhos. De fato dormi sem novos pesadelos ou lembranças, fazendo com que me sentisse um pouco mais disposta. Olhei ao redor, contudo não vi sinal de Avren em lugar algum. 

Arrisquei espiar os arredores e, quando ia voltar para dentro, o vi em forma de pássaro, voando depressa na minha direção. Era a primeira vez que presenciava sua transformação de corvo para humano e me surpreendi com a névoa negra que apareceu antes de ver seu rosto.

— Não vai ter jeito. — Ele estava de cenho franzido — Vamos ter que dar as caras e terminar com essa história logo.

— Eles estão vindo?

— Ainda não, mas estão agitados demais na cidade. Caçadores com armas novas em folha estão andando pelos limites entre a cidade e a floresta, além de que o filho de Brasjen está fazendo seu discurso. Se não formos, eles virão.

Fiquei sem saber o que dizer e tampouco o que fazer. Se tudo já estava sendo preparado por lá, então era questão de tempo até encontrarem a casa de Grethel e tentarem dar cabo de nossas vidas. Talvez em um dia ou dois eles avançassem como verdadeiros matadores sobre nós. Avren parecia completamente distante dali com seus pensamentos, mas não me atrevi a interrompê-lo.

— Você se lembra do que combinamos, não é? Não vai ficar no meu caminho para nada.

Assenti. De nada adiantaria tentar convencê-lo do real sentido da carta outra vez, pois sua teimosia era maior do que qualquer outra característica.

— Então vamos.

— Agora?

— Você tem horário marcado com eles, por acaso? — Balancei a cabeça em negativa — Não temos escolha. Confie em mim, vai terminar tudo bem.

Sequer tínhamos tomado café da manhã, contudo posso dizer por mim mesma que a tensão de estarmos indo encarar a morte de frente fez a fome desaparecer. Era loucura. Avren não conseguiria dar conta de todos e eu não tinha muito que fazer para ajudar. No entanto, era fria e triste verdade que estávamos sozinhos, sem ninguém a nosso favor.

Comecei a segui-lo floresta adentro, em direção à beira da cidade. Caçadores com rifles e arcos de fato patrulhavam a região enquanto alguém falava coisas que não tinham forma alguma aos meus ouvidos, pois as exclamações dos moradores abafavam o conteúdo do discurso. Entretanto, dava para saber que o causador de tanto alvoroço era o próprio Brasjen. Afinal, não  imagino que outra pessoa fosse capaz de desencadear tamanha comoção.

— Olha só quem está aqui... Vieram para a caminhada matinal?

O Último CorvoOnde histórias criam vida. Descubra agora