10 - O sorriso de um homem livre (final)

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10 – O sorriso de um homem livre (final)

Meu discurso foi aceito pela consciência do mestre e fui levado até a prefeitura da cidade onde iria iniciar o processo de possessão, eu disse a eles que manteria aqueles homens presos nas árvores como garantia de que não seria morto ou que Jéssica fosse perseguido por eles.

Eu estava relutante, se o paciente zero for um humano eu não sei se conseguiria mata-lo, e caso eu o matasse eu não sei se eu seria corrompido, no tempo dos estudos para me tornar um caçador, um dos meus tutores me explicou que muitas calamidades que vemos por aí, são de pessoas que se corromperam pelo poder e se tornaram forças da natureza, só nesse momento fui entender a preocupação do senhor Arthur com o patrulheiro, espero que ele tenha falado com o chefe da cidade Abaporu após resolver seus assuntos pendentes.

Vilarejo Organ (prefeitura) – noite do 20 de maio de XX17

Eu adentrei a prefeitura, uma sala conservada que se destacava naquele fim de mundo, mesmo que o vilarejo fosse tão mal tratado, seja pela sua praça ou o banco que falta lascas de madeira, e casas em um estado deplorável, eu me perguntava porque os cidadãos não se rebelaram e tiraram o prefeito a força.

Subindo as escadas eu pude sentir o ranger delas, talvez eu tenha me enganado à primeira vista, um dos homens entrou na minha frente e abriu a porta, eu coloquei a mão por cima do coldre e recarreguei ainda dentro dela.

A silhueta do paciente zero se apresentou, eu engoli em seco. Ele tinha um corpo pequeno comparado a estatura humana, e chifres em formato de galho.

Era uma rena, deitada confortavelmente na escrivaninha do prefeito.

- Só pode ser brincadeira! – Eu comentei. – Vocês recebem ordens de um veado?

- Não recebemos ordens, compartilhamos a mesma mente. – Disse um homem de bigode atrás de mim.

- Agora dê um passo a frente e aceite o mestre.

Eu obedeci.

Os olhos do veado brilharam, ela abriu a boca e um tentáculo com uma foice na ponta saiu dela, eu clamei pela Jéssica porque aquele era um momento perfeito para a ação.

Uma esfera pontiaguda rolou sob meus pés, o centro dela piscava incessantemente até finalmente parar. No canto dos olhos eu pude ver Jéssica bisbilhotando por de trás da porta, ela tinha nos seguido até ali, me perguntava como ela escondeu a própria presença no instante que pisasse na madeira solta das escadas da prefeitura.

Os espinhos da esfera se distanciaram do centro, apresentando vulgos que liberavam um gás. Eu já pude sentir minha mente esvair, mas por sorte aquele veado não percebeu, os homens atrás de mim começaram a cair um a um por conta dos efeitos do relaxante muscular, eu tirei a colt do coldre e antes da minha vista ficar turva eu disparei contra o tentáculo que se despedaçou e caiu no chão.

O veado deu um grunhido de dor, antes de desmaiar por completo eu atirei mais três vezes na cabeça dele e depois apaguei.

Vilarejo Organ (hospedaria) – tarde do dia 22 de maio de XX17

A Jéssica tinha me socorrido naquela noite, me arrastando por toda cidade até a hospedaria, ela disse que as pessoas que estavam sendo possuídas pela mente do mestre foram despertando um a um completamente perdidas.

O que mais temíamos não aconteceu, por algum motivo as pessoas começaram a ser empáticas umas com as outras, talvez por compartilharem a mesma mente e pensamentos ou tinham as mesmas sensações foi fácil para eles se colocarem no lugar dos outros. Eu pude ver pela janela do quarto algumas pessoas se desculpando por desavenças do passado.

- Sabe – Disse Jéssica enquanto segurava um copo de café nas mãos. – Eu acho que essa calamidade fez um bem a essa cidade, me pergunto se ela não poderia ser usada como experimento em outras cidades com problemas de desentendimento para reforçar a empatia.

- Não é uma má ideia. – Eu disse, continuava na cama, esperando meu ombro se recuperar.

Aquela pergunta estava matutando em minha mente, mesmo que eu tenha desmaiado por dois dias eu queria saber.

- Como você conseguiu nos seguir sem fazer nenhum barulho?

Jéssica se pôs pensativa e então respondeu.

- Eu ouvi o barulho de seus passos e com todo cuidado tentei acertar o mesmo ritmo que vocês – Ela levou o copo de café a boca. – Não foi difícil esconder minha presença quando tem tanta gente caminhando ao mesmo tempo.

Segundo o médico da cidade, eu tinha só deslocado o ombro, o que me obrigaria ficar três meses ilhado nesse vilarejo.

- Você deve estar agoniado para sair logo daqui não é mesmo? – Jéssica perguntou.

Eu olhei para a praça, um ar pacífico rodeava aquele vilarejo.

- Talvez essas são as férias que eu tanto buscava, sem contar que. – Me levantei com dificuldades e fui até a escrivaninha, eu peguei a moeda de prata e mostrei a ela. – Eu tenho uma entrevista para lhe dar.

Jéssica estava atônita, mas logo em seguida sorriu.

- Tem certeza? Não quer se recuperar antes?

- Não, você me ajudou bastante apesar que no nosso primeiro encontro você foi um estorvo.

- Está na hora de começar a filtrar tudo que você pensa senhor Simon! – Disse Jéssica, pequenos espasmos em seu sorriso demonstrava uma leve irritação.

Vilarejo Organ (hospedaria) – tarde do dia 05 de setembro de XX17

Quase na mesma semana após o término da minha missão, eu tive a confirmação de que a recompensa finalmente caiu em meu nome, eu enviei uma carta para a associação para que ele transferisse os dezesseis mil créditos para o senhor Arthur, assim quitando todas as minhas dívidas com ele, após terminar de redigir a carta eu senti uma leveza sair de meus ombros.

Os outros dias foram de entrevistas dadas para a Jéssica, ela me contou que era fascinada pela caçadora de calamidades Abigail Scar, e pensar que ela adotou um sobrenome que era marca registrada em seu rosto, realmente eu preciso pedir desculpas por aquele fatídico dia apropriadamente.

Ela me contou sobre sua família, e o quanto ela aspirava ser uma jornalista de renome, eu disse a ela porque acabei me envolvendo nesse trabalho de caçador, a dívida de meu pai, sobre Arthur Donnavo e como ele me ajudou em tanta enrascada, e meu sobrenome que depois de tanto tempo escondendo-o pela mancha do passado eu finalmente tinha orgulho de carregar.

- Filho do sol (SunSon), é um belo sobrenome.

Eu sorri, mesmo na cama da hospedaria, um sorriso genuíno, de um homem livre de dividas.

- Não é mesmo? Eu tenho muito orgulho dele.

Após esses quatro meses e ainda sentindo meu ombro dolorido eu parti em viagem, ela me aguardava na entrada da vila, jogando a moeda de prata para cima e a pegando com as costas da mão.

- Então é aqui que nosso caminho se separa. – Disse Jéssica, seus óculos escuros escondia o olhar marejado da despedida.

- Pois é. Muito obrigado por tudo.

- Eu não podia deixar minha fonte jornalística morrer não é mesmo? – Ela jogou a moeda para mim e eu a peguei com a mão enluvada que escondia a marca dos estigmas.

- Verdade, e eu não poderia deixar ninguém se machucar em minhas missões, eu nunca me perdoaria.

- Isso é sinal que você é um homem bom! – Jéssica olhou para o chão e depois me encarou. – Eu ainda irei vê-lo?

Parei para pensar em tudo que passei, deste o instante que eu fui para cadeia até realizar meus primeiros serviços de caçador, pessoas que conheci, experiencias que vivenciei, e as vezes me pergunto, se não fosse a maldita dívida de meu pai. Eu não chegaria até ali.

- O mundo é pequeno, a gente se vê.

Ela sorriu e acenou, enquanto partia até o trem das onze.

Filho Do SolWhere stories live. Discover now