1°Adormecida

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▪ Adormecida

81 a.C

Sangue.

Sangue era o cheiro sentido no meio do vilarejo, casas, que em brasas eram incendiadas. Fumaça entrava por meus pulmões e a tosse se mostrava presente, vultos passavam em câmera lenta ao meu redor, esbarrando em meu corpo com violência, o pânico era presente no meu rosto. Caos. Era o completo caos que se mostrava em meio a cena trágica ao meu redor, os vultos, se tornavam fisionomias, ah, eu conhecia bem cada uma das fisionomias. Mulheres, belas e lindas mulheres. Seus rostos lindos, contorcidos em horror e pânico. O mesmo que se aparentava no meu. Sorri em beira a angústia, somos puras, somos as coisas mais puras que existem, e olhem só, todas correndo como se fugisse do próprio Diabo. Sim, o que corriamos era propriamente do Diabo, os homens.

Vi Lucrécia me balançar pelos ombros, tentando me tirar do transe em que estava, olhava em seu rosto e sequer emoção se via do meu, observava a mesma gritar em desespero, tentando me tirar do torpor que havia entrado. Sua iniciativa foi me puxar junto a ela, fazendo meu corpo correr, mesmo não sentindo que estava. Seu braço estava sobre meus ombros e me puxava cada vez mais próximo de seu corpo, aumentando a velocidade que corriamos. Vi Anna ao nosso lado, com sua bela coruja, chamada Bela, sendo apertada em modo de proteção ao seu corpo. Corriamos e corriamos sem parar, portas não eram abertas para pessoas como nós, éramos criaturas bestiais, éramos um erro de Deus, nenhuma pessoa gostaria de ter uma de nós em sua casa. Eles eram fracos de mentes, eram fracos em tentar em entender, eram fracos por não sentir nada que a própria arrogância.

Estávamos próximas da Floresta onde nos esconderia, poucos passos e lá estaríamos onde deveríamos ficar. Na escuridão da noite. Mas em um piscar de olhos, fomos cercadas, fomos pegas, e aprisionadas. Choramos por horas em misericórdia, e julgaram-nos que criaturas como nós, éramos amaldiçoadas e nenhuma misericórdia nos salvaria perante a Deus. Somos damas do Diabo, e a ele voltariamos, nossos corpos eram amaldiçoados. Horas de jejum, de torturas, de cuspes e xingamentos.

♤-♤-♤

No momento, uma multidão se aglomera em nossa frente, nossas mãos firmes em volta do tronco de uma árvore, 80 de nós, em fileiras acorrentadas e subjulgadas, e certas do destino que teríamos. Lúcida depois de tanto tempo, observo conhecidos que me admiravam, conversavam e elogiavam, cuspindo e gritando em revolta. Observo meu pai ao longe, os olhos tristes e sôfregos, uma lágrima caia de seus olhos e aquilo me matou por dentro, meu lábio tremia, eu o amava, amava muito. Não segurando a dor que via nele, movi meus lábios murmurando em silêncio um "Eu te amo", e vi o mesmo chorar e retribuir, tudo iria ficar bem. Tudo ia. O clérigo israelita Semeon em frente ao tablado que estávamos, se prostrou e começou a murmurar palavras com arrogância e falta de conhecimento, enquanto o povo gritava em meio a tanta ignorância.

Olhei ao meu lado, Lucrécia, com os cabelos bagunçados e os lábios cortados, ela me olhava, e sorria. Próximo de nossa morte, ela sorria. E dizia que tudo seria melhor, estaríamos em paz, tudo iria ficar bem. Sorri em sua direção, agradecendo por tudo que havíamos vivido, foi a melhor amiga que eu já tive e a amava profundamente. Observei Anna ao seu lado, e a mesma estava de olhos fechados, sua coruja presa a seus pés, imóvel, parecia sentir a energia que saía de sua dona para ela. Aquilo me deixou em paz, estávamos em paz.

Terminou-se o discurso de Semeon, e homens, com pedaços de madeira e panos enrolados com fogo se aproximaram. E assim foi feito, o fogo se espalhou por todas nós, queimando nossas peles, porém nenhuma voz foi ouvida, nenhum grito, nada.

No meio do fogo, nos meus últimos momentos, vi os olhos verdes que eu tanto amava, e via a dor crucial neles, mas neles havia morte também. Então sorri, é, tudo ficaria bem.

E tudo virou a profunda escuridão.

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