Capítulo 2

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Alguém entra no quarto. Não dou atenção, continuo lendo o meu livro prefeirido, "O iluminado" que já li umas 3 vezes desde que o encontrei jogado sem capa em uma prateleira na mini "biblioteca" que nós temos aqui. Não é bem uma biblioteca, está mais para umas 5 estantes velhas de alumínio com alguns livros velhos e empoieirados. Alguns sem capa, outros sem algumas páginas. Eu sou uma das poucas pessoas que frequenta aquele lugar. Gosto de ler, principalmente histórias de terror como "O iluminado." Eu não conheço o autor, mas tenho quase certeza que vi algum outro livro dele em um sebo que tem aqui perto o orfanato. A dona dele é uma velha rabujenta que toda vez que me vê olhando a vitrine, me expulsa dizendo: "Se não vai comprar, não olha." Por isso, só fico por lá quando ela não está, o que acontece muito de manhã, antes de eu ir a aula, e sim o filho dela que, estudou na mesma escola que eu, porém estava a vários anos acima. Nunca conversei com ele, mas por algum motivo eu simpatizo com o seu jeito. 

Mesmo não tendo nem onde cair morta, eu gosto de me imaginar entrando numa livraria dessas e levando todos os livros que eu puder carregar. Ler é a única forma que eu encontro de sumir da minha realidade e ir para outro universo, nem sempre perfeitos, mas melhores que o meu, eu diria. Até o ambiente de "O iluminado" é melhor, se comparado com o meu. 

Gosto de histórias de terror, por que sempre que eu sinto que vou chorar pela vida que eu levo, penso: "Não é tão ruím assim. Podia ter um demônio atrás de mim, querendo comer meus orgãos." E aí eu supero. 

Eu queria sim ter uam família, irmãos, pessoas com quem compartilhar segredos e outras coisas, mas isso ficou no passado. Eu já cheguei a realmente acreditar que um dia os meus pais verdadeiro iriam aparecer e me tirar desse buraco. No começo eu iria ficar um pouco chateada com eles, pelo abandono, mas depois eu iria perdoá-los e tudo iria ser perfeito. Eu era do tipo que ia todas a vez espionar todo o santo casal que chegava para adotar um de nós. Nunca eram os meus pais, e se eram, eles levaram as crianças erradas com eles. Nunca me levaram. Parei de esperar por eles. 

Tudo o que eu sei é que fui deixada na porta de um orfanato quando eu tinha 2 meses de nascida. Nada mais. Nunca soube mais nada. Quem me deu o nome de Stela, foi uma das irmãs, a irmã Joaquina do outro orfanato que eu cresci. Minha irmã preferiada. Ela dizia, que eu era uma estrela na vida daquele orfanato, por isso me deu aquele nome. Quando eu tinha 7 anos, a irmã Joaquina morreu de infarto. Nunca entendi o que era "infarto" de fato. Sempre odiei essa palavra, mesmo sem saber o que significava. Só na 5ª série vim descobrir que infarto é quando o coração de alguém para de bater. Fiquei sem comer uma semana depois que a Irmã Joaquina faleceu. Desejei morrer também. Nunca pensei que eu poderia perder tão cedo, alguém tão próximo quanto ela, mas perdi, e desde então, não me autorizo a criar laços com mais ninguém do mundo.  Exceto livros.

Sempre preferi as vantagens de se está sozinha. Nunca tive a secura de ter algum amigo do meu lado, ou alguém para me fazer companhia. Nos trabalhos escolares, no orfanato, no almoço, na janta. Eu faço tudo só.

Mais alguém entra, abrindo a porta com força. Dessa vez, eu não resisto a curiosidade de saber quem é. Abaixo o livro e me deparo com aquela figura roliça vindo até a mim. Diretora Smith. Ela usa um saião preto e uma camisa de botões dourados que está fechada até em cima com as mangas até o pulso. Até as freiras do meu outro orfanato se vestiam de uma forma mais atrevida que essa mulher.

Ela anda em minha direção carregando uma expressão pesada em seu rosto como se tivesse alguma notícia ruím para me dar. Uma sensação de pânico começa a tomar conta de mim, mas aí eu penso: "Cara, eu estou aqui. A minha cama ainda não caiu. Estou segurando o meu livro preferido e ele está bem, na medida do possível. Não tenho ninguém que eu realmente me importe no mundo, então porque eu estou com medo?"

Ela anda em passos largos enquanto eu a observo caminhar. 

- Senhorita James, a família Watson, está aqui para o encontro social. - diz ela olhando fixamente a sua prancheta. "Não, obrigada." penso o que me dá uma vontade imensa de rir. Balanço a cabeça em afirmação e volto o meu olhar para o livro. - IMEDIATAMENTE, SENHORITA JAMES! - berra ela dando-me as costas e indo em direção a porta do quarto coletivo.

Bufo internamente colocando um pedaço de papel amassado e encardido no livro para marcar a página, levantando da cama e saindo do quarto. Indo para a sala de visita, percebo que não estou bem vestida para aquela ocasião. Olho para baixo e vejo aquele coturno velho de guerra que eu encontrei a alguns meses, enquanto eu estava fazendo uma limpeza no porão. Essas limpezas acontecem mesalmente e cada mês é a vez de um cômodo. Naquela vez, eu me ofereci para limpar, porque sempre tive curiosidade em saber que coisas incríveis estariam sendo destruidas pelo tempo todo naquele porão, mas tudo o que eu achei de interessante foi esse coturno do exército dos Estados Unidos. São bem feios, mas servem pra quando chove.

A calça jeans que eu estou usando, nem parecem mais uma calça jeans de tão fina, mas agradeço aos céus todos os dias por ela só possuir dois míseros buracos. Um na parte do cinto, e outro na altura do joelho. 

Todo o ano, a coordenação do orfanato, leva todos os órfãos para um brechó especializado em roupas feias. Eu nem ligo de serem velhas, mas ela são mesmo feias. Feias pra caramba. É o tipo de lugar que pessoas como eu compram as roupas. É bizarro, mas foi lá que eu encontrei essa calça. Fora as roupas que nos mandam de caridade, que eu prefiro, pois a maioria são roupas muito boas, o ruím é que nós não escolhemos nada, apenas aceitamos o que separam para nós.

Vou andando em direção a sala de visita, enquanto tento domar o meu cabelo rebelde passando a mão quinhentas vezes para dá um jeito. 

Chego finalmente na sala e vejo a figura daquele casal, a família Watson. O homem pareçe um ator de comercial de carros clássicos. Barbudo, com sombrancelhas grossas, pareçe ter uns 45 anos de idade. A mulher parece ter saído de uma revista sobre bem-estar. Muito magra, cabelos loiros e roupas caras. Dá para sentir o seu perfume caro a quilômetros de distância. A perfeição daquele casal me faz sentir como inseto feio e barulhento naquele ambiente de paz, hiates e viagens para europa, o que me faz pensar: "Que diabos eles querem me adotando temporariamente?"

ORFÃOnde histórias criam vida. Descubra agora