os olhos do papai

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Vovó me ensinara a desenvolver um apreço em especial por frutas vermelhas desde muito pequena. Sempre eram cerejas, morangos, amoras; muitas maçãs e melancias. Um cubinho de carne do meu coração, tudo junto numa vitamina e todas as minhas tardes na casa de campo da família estavam mais do que garantidas; E era muito gostoso! Desejei pintar os cabelos de ruivo algumas vezes, e quis Vovó num abraço gostoso debaixo do sol escaldante, nossas cabeças fervendo e queimando...

Disse-lhe uma vez: "O meu coração borbulha contigo." Não acho que ela tenha entendido, mas eu precisava tanto dizer.

Apesar do conforto que os refrescos me proporcionavam, eu tinha um medo absurdo do som que o liquidificador fazia, porque ele me recordava dos motores grudados aos carros da cidade. Minha casa ficava no centro, e, curiosamente, a circulação de veículos era redobrada por lá no momento exato em que mamãe e papai decidiam que era a hora perfeita para brigar. Eu sempre acabava espremida dentro do armário do meu quarto, com medo de compreender o significados dos seus berros e ofensas. Continuava quietinha, enrolando os cachos do meu cabelo castanho e contando até vinte repetidas vezes, porque, naquela idade, eu só sabia contar até aí.

— Se não tivesse me feito parir essa coisa, não teríamos tantos problemas!

— Então agora a culpa é toda minha?

— Meu deus, como você é dramático... Eu devia ter sumido com essa garota quando ainda podia, merda.

Os motores dos carros costumavam expelir uma fumaça negra que ardia os meus olhos, mas eu sempre insistia em correr até a janela, tropeçando nos meus próprios pés, e aspirar o cheiro de gasolina. O rugido alto me fazia crer que um urso enorme me esperava na porta de casa, aguardando pra dar o bote, e meu rosto acabava molhado, cheio de fuligem. E eu respirava, e chorava, e dormia, e enrolava o cabelo na ponta dos dedos, mas ainda era capaz de escutar os pratos se estilhaçando no chão da sala. Numa dessas, o meu globo de neve favorito acabou despedaçado na mesa de jantar. Passar tempo com mamãe e papai no mesmo ambiente era um castigo, e acredito que eles pensavam da mesma forma em relação à minha presença.

Mas mamãe dizia: "Você se acha muito esperta, não é?"
E, bom, se eu não enxergasse através das entrelinhas de suas palavras, talvez achasse que era uma piada.

Todos os sábados e domingos eram dias de risadas e bochechas salientes coradas. Os únicos momentos mais felizes da semana, e Vovó adorava prender lacinhos coloridos no meu cabelo que parecia menor sempre que ela os via. E não podia contá-la jamais que arrancava um cachinho por dia enquanto os carros circulavam pelo asfalto quente, roncando e berrando "menina má, seus pais vão te esquecer na floresta congelada", apenas sussurrava como resposta que era impressão dela e que estava com muuuita sede mesmo, porque sabia que não iria pestanejar antes de fazer uma vitamina generosa de frutas vermelhas pra mim.

E eu estava certa, ela sempre fazia. Sempre, sempre. Sem exceção. Eu tinha uma urgência descabida em correr pra me esconder debaixo do sofá quando ela ligava o liquidificador, com muito medo de que mamãe saltasse de dentro dele e gritasse comigo como fazia todos os dias antes de dormir. Mas valia à pena, porque depois de lembrar do centro da cidade, fuligem do meu rosto, sangue pingando e pingando e escorrendo nos meus cachinhos curtos, eu sabia que sempre podia engolir uma vitamina pra lá de bonita, e contar para a Vovó sobre as brincadeiras que inventei com a minha boneca naquela semana.

Eu me sentia feliz durante esses lampejos de risadas, e corria muito só pra ter a chance de agarrar a pontinha de um sorriso sincero. Meu coração era vermelho e tão triste quanto os carros da cidade, e precisava manter em mente que o mundo não ia parar só por causa dos sangramentos constantes dos meus dedos e braços machucados. Vovó conseguia me manter respirando, e eu a amava naqueles fins de semana como jamais amei fruta alguma no mundo.

Em uma dessas tardes de risada e refrescos, durante uma conversa ela me perguntou:

— Soojin, por que você gosta tanto de vermelho?

— É a cor dos olhos do papai quando ele diz que me ama.

— Mas os olhos do seu pai são castanhos, amor.

— É que sempre ficam vermelhos depois de chorar.

THE LOVELY CURLSOnde histórias criam vida. Descubra agora