A presença dos seus pares perturbava a pobre donzela. Acorrentados. Amedrontados. Envergonhados. Deixou que aquilo acontecesse não somente com eles, mas com ela também, era o que pensava.
Seus olhos ímpares choravam de ódio. Aquele maldito homem que a tirara da cela que ele mesmo a confinou, não se contentou em somente humilhá-la a retirar a sua liberdade, mas foi arrastada ao convés, onde todos estavam.
Tripulação, mulheres e homens comuns, a sua família, olhavam com angústia e instigados pelas ações daquele homem.
A donzela rasgava com o ar com os seus gritos, sua fúria debatia-se contra o chão, na vontade de se soltar e encontrar refúgio no canto imundo no fundo do navio que há alguns dias fora a sua morada.
Aquele homem estranho, bizarro, a puxava de volta e com tanta facilidade que era possível ouvir os gemidos de dor.
— Pare! Por favor! Está machucando ela demais! Como pode fazer isso com ela?! — bradou um garoto de pele escura, que mal tinha pelos no rosto, mas a sua altura demonstrava certo avanço na idade jovial.
Com um simples aceno, aquele homem gigante comandou que um de seus subalternos calasse a boca do rapaz e, bastou um soco, para levá-lo até o chão. Resmungou de dor por alguns segundos, mas não conseguiu tirar os olhos da sua amiga. Olhos pintados de vermelhos e lagrimas salgadas.
O vulgo capitão, então, puxou a garota e a segurou pelo pescoço, de modo que todos pudessem ver o seu rosto.
— "Ela?" — vociferou, duvidoso — a "isso" que você se refere? A essa besta? Isso aqui não é nenhuma mulher, moleque. A cabeça dessa criatura será a chave para um futuro melhor à comunidade.
Os olhares do povo cresceram e se tornaram indagações, e diante da resposta dos seus convidados, o homem virou-se do rapaz e atirou a donzela no chão de madeira.
As correntes tilintavam conforme se chocaram com o convés e a garota gritou de dor mais uma vez.
— Revele-se, sua cobra imunda! Antes que eu arranque a sua cabeça! — vociferou novamente o estranho capitão.
Agachada dentre as correntes, a donzela negra chorava de dor e vergonha, por tamanho aviltamento. Mas os seus dentes cerrados de ansiedade e dor deram espaço para os sentimentos de ódio e raiva aflorarem.
Sua pele macia endureceu-se e escamou-se, ao passo que o turbante que cobria os seus cabelos se ondulava para todas as direções, até que finalmente cedeu aos impulsos e revelou inúmeras serpentes.
A sua face, a sua linda face, desfigurou-se numa carranca maligna. Caninos pontiagudos, a bocarra estendida de orelha a orelha e os olhos arqueados em raiva, com íris verticais e amarelas. Num ato de raiva, deu o que aquele bárbaro tanto queria: a sua revelação.
Berrou tão alto que poderia verter os ouvidos de todos ali em sangue, e bastou um simples olhar para petrificar aquele homem.
A raiva imbuída em sua voz e em seu olhar foi o bastante para reduzir a estátua de pedra que se formara em pedaços, que voaram para todos os cantos do navio.
Espantados, muitos dos que estavam ali pularam no rio.