PRIMEIRA PARTE

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TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA
Lima Barreto
I A LIÇÃO DE VIOLÃO
Como de hábito, Policarpo Quaresma, mais conhecido por Major Quaresma, bateu em casa
às quatro e quinze da tarde. Havia mais de vinte anos que isso acontecia. Saindo do Arsenal de
Guerra, onde era subsecretá- rio, bongava pelas confeitarias algumas frutas, comprava um queijo, às
vezes, e sempre o pão da padaria francesa.
Não gastava nesses passos nem mesmo uma hora, de forma que, às três e quarenta, por ai
assim, tomava o bonde, sem erro de um minuto, ia pisar a soleira da porta de sua casa, numa rua
afastada de São Januário, bem exatamente às quatro e quinze, como se fosse a aparição de um astro,
um eclipse, enfim um fenômeno matematicamente determinado, previsto e predito.
A vizinhança já lhe conhecia os hábitos e tanto que, na casa do Capi- tão Cláudio, onde era
costume jantar-se aí pelas quatro e meia, logo que o viam passar, a dona gritava à criada: "Alice,
olha que são horas; o Major Quaresma já passou."
E era assim todos os dias, há quase trinta anos. Vivendo em casa pró- pria e tendo outros
rendimentos além do seu ordenado, o Major Quaresma podia levar um trem de vida superior ao seus
recursos burocráticos, gozando, por parte da vizinhança, da consideração e respeito de homem
abastado.
Não recebia ninguém, vivia num isolamento monacal, embora fosse cortês com os vizinhos
que o julgavam esquisito e misantropo. Se não tinha amigos na redondeza, não tinha inimigos, e a
única desafeição que mere- cera, fora a do doutor Segadas, um clínico afamado no lugar, que não
podia admitir que Quaresma tivesse livros: "Se não era formado, para quê? Pedantismo!"

O subsecretário não mostrava os livros a ninguém, mas acontecia que, quando se abriam as
janelas da sala de sua livraria, da rua poder-se- iam ver as estantes pejadas de cima a baixo.
Eram esses os seus hábitos; ultimamente, porém, mudara um pouco; e isso provocava
comentários no bairro. Além do compadre e da filha, as únicas pessoas que o visitavam até então,
nos últimos dias, era visto entrar em sua casa, três vezes por semana e em dias certos, um senhor
baixo, magro, pálido, com um violão agasalhado numa bolsa de camurça. Logo pela primeira vez o
caso intrigou a vizinhança. Um violão em casa tão res- peitável! Que seria?
E, na mesma tarde, urna das mais lindas vizinhas do major convidou uma amiga, e ambas
levaram um tempo perdido, de cá para lá, a palmi- lhar o passeio, esticando a cabeça, quando
passavam diante da janela aberta do esquisito subsecretário.
Não foi inútil a espionagem. Sentado no sofá, tendo ao lado o tal sujeito, empunhando o
"pinho" na posição de tocar, o major, atentamente, ouvia: "Olhe, major, assim". E as cordas
vibravam vagarosamente a nota ferida; em seguida, o mestre aduzia: "É 'ré', aprendeu?"
Mas não foi preciso pôr na carta; a vizinhança concluiu logo que o major aprendia a tocar
violão. Mas que coisa? Um homem tão sério metido nessas malandragens!
Uma tarde de sol — sol de março, forte e implacável — aí pelas cerca- nias das quatro
horas, as janelas de uma erma rua de São Januário povoa- ram-se rápida e repentinamente, de um e
de outro lado. Até da casa do gene- ral vieram moças à janela! Que era? Um batalhão? Um
incêndio? Nada disto: o Major Quaresma, de cabeça baixa, com pequenos passos de boi de carro,
subia a rua, tendo debaixo do braço um violão impudico.
É verdade que a guitarra vinha decentemente embrulhada em papel, mas o vestuário não lhe
escondia inteiramente as formas. À vista de tão escandaloso fato, a consideração e o respeito que o
Major Policarpo Qua- resma merecia nos arredores de sua casa, diminuíram um pouco. Estava
perdido, maluco, diziam. Ele, porém, continuou serenamente nos seus estu- dos, mesmo porque não
percebeu essa diminuição.
Quaresma era um homem pequeno, magro, que usava pince-nez, olhava sempre baixo, mas,
quando fixava alguém ou alguma coisa, os seus olhos tomavam, por detrás das lentes, um forte
brilho de penetração, e era como se ele quisesse ir à alma da pessoa ou da coisa que fixava.
Contudo, sempre os trazia baixos, como se se guiasse pela ponta do cavanhaque que lhe
enfeitava o queixo. Vestia-se sempre de fraque, preto, azul, ou de cinza, de pano listrado, mas
sempre de fraque, e era raro que não se cobrisse com uma cartola de abas curtas e muito alta, feita
segundo um figurino antigo de que ele sabia com precisão a época.
Quando entrou em casa, naquele dia, foi a irmã quem lhe abriu a porta, perguntando:
—Janta já?
—Ainda não. Espere um pouco o Ricardo que vem jantar hoje consoco.
—Policarpo, você precisa tomar juízo. Um homem de idade, com posição, respeitável, como
você é, andar metido com esse seresteiro, um quase capadócio — não é bonito!
O major descansou o chapéu-de-sol — um antigo chapéu-de-sol, com a haste inteiramente
de madeira, e um cabo de volta, incrustado de peque- nos losangos de madrepérola — e respondeu:
—Mas você está muito enganada, mana. É preconceito supor-se que todo homem que toca
violão é um desclassificado. A modinha é a mais genuína expressão da poesia nacional e o violão é
o instrumento que ela pede. Nós é que temos abandonado o gênero, mas ele já esteve em honra, em
Lisboa, no século passado, com o Padre Caldas, que teve um auditório de fidalgas. Beckford, um inglês notável, muito o elogia.
—Mas isso foi em outro tempo; agora...

o triste fim do policarbonato quaresma de  LIMA BARRETOOnde histórias criam vida. Descubra agora