Havia bem dez dias que o Major Quaresma não saía de casa. Na sua meiga e sossegada casa
de São Cristóvão, enchia os dias da forma mais útil e agradável às necessidades do seu espírito e do
seu temperamento. De manhã, depois da toilette e do café, sentava-se no divã da sala princi- pal e
lia os jornais. Lia diversos, porque sempre esperava encontrar num ou noutro uma notícia curiosa, a
sugestão de uma idéia útil à sua cara Pátria. Os seus hábitos burocráticos faziam-no almoçar cedo,
e, embora estivesse de férias, para os não perder, continuava a tomar a primeira refei- ção de garfo
às nove e meia da manhã.
Acabado o almoço, dava umas voltas pela chácara, chácara em que predominavam as
fruteiras nacionais, recebendo a pitanga e o cambuí os mais cuidadosos tratamentos aconselhados
pela pomologia, como se fossem bem cerejas ou figos.
O passeio era demorado e filosófico. Conversando com o preto Anas- tácio, que lhe servia
há trinta anos, sobre coisas antigas — o casamento das princesas, a quebra do Souto e outras — o
major continuava com o pensamento preso aos problemas que o preocupavam ultimamente. Após
uma hora ou menos, voltava à biblioteca e mergulhava nas revistas do Ins- tituto Histórico, no
Fernão Cardim, nas cartas de Nóbrega, nos anais da Biblioteca, no von den Stein e tomava notas
sobre notas, guardando-as numa pequena pasta ao lado. Estudava os índios, Não fica bem dizer
estu- dava, porque já o fizera há tempos, não só no tocante à língua, que já quase falava, como
também nos simples aspectos etnográficos e antropoló- gicos. Recordava (é melhor dizer assim),
afirmava certas noções dos seus estudos anteriores, visto estar organizando um sistema de
cerimônias e fes- tas que se baseasse nos costumes dos nossos silvícolas e abrangesse todas as
relações sociais.
Para bem se compreender o motivo disso, é preciso não esquecer que o major, depois de
trinta anos de meditação patriótica, de estudos e refle- xões, chegava agora ao período da
frutificação. A convicção que sempre tivera de ser o Brasil o primeiro país do mundo e o seu grande
amor à Pátria eram agora ativos e impeliram-no a grandes cometimentos. Ele sen- tia dentro de si
impulsos imperiosos de agir, de obrar e de concretizar suas idéias. Eram pequenos melhoramentos,
simples toques, porque em si mesma (era a sua opinião), a grande Pátria do Cruzeiro só precisava
de tempo para ser superior à Inglaterra.
Tinha todos os climas, todos os frutos, todos os minerais e animais úteis, as melhores terras
de cultura, a gente mais valente, mais hospitaleira, mais inteligente e mais doce do mundo — o que
precisava mais? Tempo e um pouco de originalidade. Portanto, dúvidas não flutuavam mais no seu
espírito, mas no que se referia à originalidade de costumes e usanças, não se tinham elas dissipado,
antes se transformaram em certeza após tomar parte na folia do "Tangolomango", numa festa que o
general dera em casa.
Caso foi que a visita do Ricardo e do seu violão ao bravo militar veio despertar no general e
na família um gosto pelas festanças, cantigas e hábitos genuinamente nacionais, como se diz por aí.
Houve em todos um desejo de sentir, de sonhar, de poetar à maneira popular dos velhos tem- pos.
Albernaz, o general, lembrava-se de ter visto tais cerimônias na sua infância: Dona Maricota, sua
mulher, até ainda se lembrava de uns versos de Reis; e os seus filhos, cinco moças e um rapaz,
viram na coisa um pre- texto de festas e, portanto, aplaudiram o entusiasmo dos progenitores. A
modinha era pouco; os seus espíritos pediam coisa mais plebéia, mais carac- terística e
extravagante.
Quaresma ficou encantado, quando Albernaz falou em organizar uma chegança, à moda do
Norte, por ocasião do aniversário de sua praça. Em casa do general era assim: qualquer aniversário
tinha a sua festa, de forma que havia bem umas trinta por ano, não contando domingos, dias
feriados e santificados em que se dançava também.
O major pensara até ali pouco nessas coisas de festas e danças tradi- cionais, entretanto viu
logo a significação altamente patriótica do intento. Aprovou e animou o vizinho. Mas quem havia
de ensaiar, de dar os versos e a música? Alguém lembrou a tia Maria Rita, uma preta velha, que
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o triste fim do policarbonato quaresma de LIMA BARRETO
Non-Fictionpara a futura resenha de História