Capítulo 1 - Escolhas

829 62 9
                                    

O ruído do riacho diminuía gradativamente, à medida em que me infiltrava cada vez mais pelo bosque. Quanto mais avançava pelas folhagens, estranhamente mais silencioso ficava. Meus olhos esquadrinhavam todo o caminho e, por estarem alertas, foi fácil identificar que o motivo do silêncio era que não havia muita vida por perto, como normalmente há na natureza.

Isso já era um mal sinal, para qualquer ser humano capacitado do mínimo de raciocínio de sobrevivência, mas não podia recuar. Não havia vindo de tão longe para desistir. Aliás, desistir com certeza não era uma opção. Que outra escolha eu tinha, afinal? Regressar ao vilarejo de minha terra natal e ser banida de lá? Não precisava ter ficado para saber que este era o meu destino.

Eu simplesmente não me encaixava. Sempre fui muito diferente das pessoas com as quais convivia e estava cada vez mais difícil esconder. Simplesmente era muito para as pessoas assimilarem que uma mulher podia ter cérebro, podia questionar coisas. Sempre tive muitas perguntas, em busca de respostas que ninguém podia me dar – e concluí isso da pior forma possível. Minha tia fazia o que podia, mas estava claro que muito em breve a situação facilmente poderia escapar de seu controle. Algum passo em falso que eu daria, e a vila toda se voltaria contra nós. Admito ter muitos defeitos, mas ser displicente não é um deles. Então, comecei a reunir todas as informações que tinha. Alguns aldeões contavam histórias para as crianças de um lugar que era amaldiçoado, criaturas horripilantes e que devoravam almas, mas que também havia uma lenda sobre uma criatura mágica e muito sábia. A lenda dizia que seus feitiços e conhecimento vinham dos muitos livros que tinha em seu castelo, onde o acesso era permanentemente proibido. Em troca de alguns favores, consegui um livro da curandeira que falava sobre essa mesma criatura, além das montanhas.

Assim, com um lugar para se começar minha busca, eu parti.

Desde então venho caminhando há alguns dias, um mês talvez. Passei por alguns vilarejos pelo caminho, mas não me atrevi a atravessá-los e muito menos parar para conversar com alguém, depois do primeiro. Não queria correr o risco de perceberem que estava sozinha e ser seguida novamente – a primeira vez não acabou bem. Embora tenha conseguido um pouco mais de informações neste vilarejo sobre as lendas, não valia a pena ter problemas com estranhos e problemas eu já tinha o suficiente. Estava ciente que tudo o que tinha eram apenas rumores, mas o que mais poderia fazer? O único lugar que sabia que possuíam livros, além do mencionado pela lenda, era a capital – mas eram caros e seu acesso era restrito quase que totalmente aos monges e aos nobres, porém. Não havia outra maneira.

A viagem, no entanto, estava sendo no mínimo interessante.

Nunca havia saído de Vergara antes, e apesar do caminho árduo, tudo era novidade. Pelo menos, estava tendo essa presença de espírito para apreciar tudo o que meus olhos podiam ver. No fundo, sabia que esta poderia ser a última e que estes talvez poderiam ser meus últimos instantes de vida – afinal, tudo pode acontecer dentro ou fora da vida selvagem e havia aprendido a aceitar isso. Essa talvez fosse a ideia a qual tinha mais orgulho de ter pensado e assimilado, verdadeiramente: a única certeza que temos da vida é a morte. Pensando logicamente, parecia-me, portanto, muito natural aceitar sua chegada. Gostaria que ela fosse um pouco tardia, é verdade, mas sabia que não havia como lutar sobre isso – uma vez que o momento chega, não há escapatória.

Foi a primeira vez que experienciei a sensação do conhecimento, um sentimento de liberdade, tendo em vista que há uma certa tendência em temer-se o desconhecido. Se a descoberta estava ali, mesmo que fosse uma descoberta estritamente pessoal, é porque não o temia ou tinha concluído que não havia motivos para se temer. Ou pelo menos, não a ponto de me manter criando raízes no mesmo lugar. E estava curiosa o bastante para seguir em frente, mesmo que meu mundo não fosse mais igual depois de cada descoberta.

Definitivamente, curiosidade era o que movia minhas pernas caminhando, mesmo em momentos de muito cansaço. Era o que me mantinha seguindo em frente agora mesmo, quando meus instintos me diziam que devia dar meia-volta.

Pensei várias vezes durante a caminhada o quanto isso era contraditório – a lógica da mente versus os instintos. Na verdade, pensando mais a fundo isso não parecia ter o menor sentido e era nesse tipo de situações onde percebia que precisava de respostas em outro lugar, que se tratavam de coisas que ainda não estavam na minha mente, mas em outras que precisava encontrar.

Também me perguntava frequentemente: estas encruzilhadas que se formavam em minha mente, seria eu uma exceção às criaturas humanas, ou havia outros como eu? Se existem, onde estão? Seria possível que discutissem e expusessem seus pensamentos e encontrassem juntos soluções – se é que posso colocar assim –, para estes dilemas?

Pouco tempo depois, finalmente meus esforços foram recompensados, embora ainda não fosse uma resposta direta às minhas indagações. Entre as copas das árvores mais distantes, pude vislumbrar um prenúncio de uma construção, aparentemente grande. E quanto mais me aproximava, maior era a noção do tamanho – era realmente um castelo imenso e imponente.

Localizado bem no centro de uma espécie de clareira, era constituído de materiais os quais nunca tinha visto. Esculturas muito elaboradas descansavam entre as inúmeras pilastras, como se fosse uma competição de qual trabalho era o mais primoroso. Eram um pouco sinistras, deveria admitir, mas isso não me importava – a construção me fascinava de forma tão latente que quase não notei o espetáculo particular, bem à frente da enorme porta principal.

Um frio terrível perpassou por todo meu corpo, deixando-me extraordinariamente tensa. Facilmente poderia acreditar que estava alucinando, mas sabia que não tinha repertório suficiente para criar aquela fantasia: dois corpos jovens inertes pendiam de um grande mastro de madeira cada um, bastante afiado em sua ponta.

Corpos empalados posicionados bem na entrada – não precisei de muito tempo para concluir, era um aviso nítido.

Não posso dizer quanto tempo fiquei ali parada, observando e pensando no que fazer em seguida. Novamente, me via em um caminho sem saída: não havia para onde ir, não podia voltar. A única opção que tinha era seguir em frente, não importava o que pudesse acontecer. Certamente, não era burra em imaginar que sairia algo de bom ao entrar naquele castelo. Quando passei pela porta de madeira estupidamente grossa, já havia feito a minha escolha.

Estava claro como água: era uma escolha entre a vida e a morte.

AscensãoOnde histórias criam vida. Descubra agora