Completo

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A mesa parece firme. De mogno, dá para ver pela cor escura. As beiradas gastas segredam sua antiguidade, construída em um tempo em que as coisas eram feitas para durar. A cadeira em frente completa o jogo. A tonalidade da madeira é a mesma. Também é robusta, o suficiente para suportar alguém do meu tamanho. Não que eu seja grande, ao contrário, mas os anos se encarregaram de me tornar mais pesado. Arrasto tudo para o vão que separa a sala do quarto, onde antes certamente havia uma porta. No alto, o pórtico também de madeira, com desenhos em relevo, destoa da simplicidade do restante do apartamento.

O local é pequeno, úmido e rescende a mofo. Pela janela vislumbro o movimento da rua, uma cena tão desconhecida quanto aterradora. Estou de terno, vestido adequadamente para um momento importante. Tiro meu canivete do bolso e abro a lâmina ainda afiada. Minhas mãos doem, castigadas pela artrite. Subo na cadeira, os pés trêmulos, vacilantes, mas consigo me equilibrar.

De cima, vejo o colchão puído e repleto de manchas de bolor. No travesseiro repousa um livro de capa escura. Dentro dele, uma carta.

Um passo, como um degrau, e estou sobre a mesa. Com a ponta do canivete começo a entalhar uma mensagem.

***

Peço que me perdoem. O que escrevo agora aconteceu há muitos anos, de modo que algumas lembranças mais parecem borrões. Outras, confesso, surgem vívidas como um quadro impressionista.

Na primavera de 1914 eu era um jovem recém formado. Zootecnia, era esse o curso, pela Universidade do Maine. Eu era o que se poderia chamar de um sujeito de sorte. Tinha um bom emprego, uma esposa decente e até uma filha, além de um futuro promissor, enfim, tudo o que alguém podia sonhar na vida. Mas, claro, havia um porém. Ou dois. Bebidas e jogos de cartas. Pôquer e uísque, para ser exato.

Certa noite, como acontecia com regularidade, acabei me entusiasmando em uma rodada de apostas. Já perdia um bom dinheiro, mas acreditava com a fé dos derrotados iludidos que a maré de boa sorte me aguardava na próxima rodada. Nunca veio. A cada mão eu me afundava mais e mais. Nos recônditos de minha mente, ouvia Laura me enxovalhando. “Temos uma filha para criar”, ela dizia. E ali, com as cartas diante de mim, eu acreditava que era dela a culpa por todo o meu azar.

Não lembro mais o quanto perdi. Um carro ou uma hipoteca, talvez. Só sei que cheguei em casa e, conforme havia antecipado, com Laura me esperando com aquele discurso que eu conhecia de cor. Hoje sei que ela não tinha escolha, mas, na época, naquela ocasião, eu nem lhe dei chance. Estava farto dela. Cansado de seus sermões e de suas tentativas patéticas de me resgatar, de me tornar um pai de família honrado. Naquela noite, mais bêbado do que de costume, eu avancei sobre ela. Queria que ela se calasse.

Lembro de seu rosto até hoje, a vermelhidão, o filete de sangue escorrendo da boca aberta em descrença. Os braços cruzados sobre o peito, num instinto de proteção, enquanto eu, completamente fora de mim, lhe desferia socos e chutes. Não me recordo do momento em que apanhei a tesoura sobre a pia da cozinha. Mas por certo foi depois que Ellie veio ao socorro dela. Para falar a verdade, não enxerguei nem uma nem outra. Apenas ouvi ao longe os pedidos de socorro enquanto meu braço girava afundando as pontas em movimentos repetidos.

Só fui me dar conta depois, quando amanheci na delegacia. Ambas estavam mortas. Minha esposa e minha filha.

O julgamento foi rápido. No Maine não se perdia muito tempo com assassinos naquela época. Prisão perpétua, naturalmente. O juiz disse ter medo de mim e lamentou não poder aplicar pena de morte.

Se eu estava arrependido? Não sei dizer. Tentava encontrar uma explicação, isso é certo, mas ainda insistia comigo mesmo que Laura fora a maior culpada. Se ela não tivesse gritado, se tivesse me deixado em paz, não teríamos chegado a tanto.

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⏰ Last updated: Dec 10, 2014 ⏰

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