Um novo dia raiava novamente do lado de fora e a luz invadia a casa em que Eric e Becca passaram a noite, fazendo brilhar cada madeira da estante da sala, revelando à menina o quanto de poeira havia ali. A televisão mostrava o reflexo dos cabelos ruivos dela presos num rabo de cavalo cuja ponta descia pelos seus ombros. Ela se levantou do sofá, onde dormira, devagar, na esperança de não acordar um Eric sem camiseta que adormecera do seu lado. Assim que o fez, colocou a camiseta branca por cima do sutiã, cobrindo seu peito e sua barriga antes nus.
Ainda em silêncio, caminhou até a cozinha procurando algo para comer. Abriu todos os armários, mas tudo o que encontrou foram panelas e copos guardados. A cada porta que abria uma fumaça de poeira invadia as narinas de Becca, que por várias vezes, segurava um espirro.
Procurou durante longos minutos até dar um suspiro, aceitando a possível derrota. Lembrou-se da bolsa branca que Oliver fizera questão de buscar na cozinha. Se ao menos a tivessem pego. Lembrou-se do barulho metálico das latinhas batendo umas nas outras enquanto ele e Nina se aproximavam na volta.
Nina. O pensamento a assombrava. Ela ainda não conseguia acreditar no que havia acontecido em Orquídea. Os minutos de luta ainda rodeavam sua mente, pintando com clareza todos os detalhes desde o arremesso contra a parede até a queda na escada. Ainda que tivesse aceitado que a culpa não era inteiramente sua, ela havia empurrado Nina pela escada. E isso nunca mudaria.
Pare! Não adianta se culpar. A morte de Nina não é um peso apenas seu. Se não fosse por White você não a teria matado.
Ela queria acreditar nisso. Queria muito. Mas, simplesmente, não era capaz.
— Pensando nos feijões que deixamos para trás em Orquídea? — a aparição súbita da voz de Eric cortou a linha de pensamento, fazendo-a dar um pulo.
— Quer me matar do coração, é? — ela perguntou, olhando nos olhos acastanhados dele.
Ele estava descalço e ainda sem camiseta, exibindo seu corpo definido. Vestia apenas a calça branca que Nina distribuiu em Orquídea. Em seu rosto, Becca via uma porção de barba, da mesma cor que seus cabelos crespos, crescendo aos poucos enquanto seus lábios sorriam para ela, dizendo que não teve intenção de assustá-la, mas que estava feliz já que o fez.
— Você precisava ter visto seu rosto — ele gargalhava.
— Idiota — ela acertou um leve soco em seu ombro.
— Ai — ele queixou-se, levando a mão no ombro — Força sobre-humana, se lembra?
Becca não havia se lembrado. Ainda não entendia muito bem como aquilo funcionava.
— Ainda não entendo porque nós fomos escolhidos para isso.
— White disse que me escolheu por causa da minha marra e porque não me rendo tão fácil assim.
— Isso é verdade. Mas por que eu? Ele nunca me revelou o real motivo. Apenas disse que eu saberia na hora certa.
— O que quis dizer com "hora certa"? — ele disse, recebendo um dar de ombros como resposta.
De repente, Eric desviou seu olhar de Becca, focando-o para algo acima dela. Em seguida, abriu um sorriso e esticou a mão. Voltou com duas latas de feijões enlatados.
— Eu procurei por toda parte — ela se justificou, inconformada.
— Bem, eu sou mais alto. Talvez você não tenha enxergado — e riu enquanto falava.
Becca forçou uma expressão brava, mas por fim caiu na risada junto com Eric. Abriu uma gaveta de um dos vários armários e pegou duas colheres. Depois, agarrou uma das latas da mão do menino e se dirigiu ao sofá, onde se sentou e abriu o que seria sua primeira refeição do dia. Enquanto comia, sua mente imergiu em pensamentos e perguntas. Quando será a hora certa?
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CRUEL
Science FictionNuma sociedade devastada pelas mãos humanas, apenas os adolescentes menores de 18 anos são capazes de habitar tranquilamente o planeta. A lei é clara: o adolescente que completa 17 anos, deverá passar pelo processo de Introdução, e deverá aceitar, s...