Pedro - Prólogo.

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Tive meu primeiro contato com a morte aos 8, no funeral da minha mãe, onde uma tia que nunca tinha me ligado pra desejar parabéns em algum aniversário, me pegou no colo, tirou meus cabelos loiros do olho, e deu a notícia que meu pai não conseguiria dar, minha mãe foi esquartejada, e por isso o velório não teve a parte do caixão aberto coberto por um véu, algo comum na cultura brasileira. 

Eu não entendi o que havia acontecido, e nem queria, foi só quando eu cheguei em casa que notei que nunca mais receberia um beijo de boa noite. Toda a família reunida no funeral era da minha mãe, afinal meu pai é russo e seus parentes não pegariam um voo de muitas horas pra ver ela sendo cremada, mas depois desse dia nenhum dos parentes brasileiros quis manter nenhum tipo de contato comigo e meu pai, tudo ficou meio cinza, era bom passar tardes na casa da minha avó materna, comer bolo e assistir televisão aberta.

Sabe quando dizem que você só conhece algo quando realmente convive com isso? Aos 14 anos eu conheci a morte, foi quando meu pai resolveu que deveríamos nos aproximar dos parentes russos. Eu não sei se sou exatamente o tipo de pessoa que curte novas experiências, muitos jovens só querem viajar pro máximo de lugares possíveis, não sou um deles, mas eu até fiquei animado com a ideia de passar um mês na Rússia, porque nem estava acontecendo nada demais na minha vida.

Aliás, eu sei falar russo. 

Quando cheguei na casa do meu tio, notei que a família toda parecia dividir a mesma casa, mas era uma puta casa, 3 andares, muitos quartos, uma sala com lareira e estilo vintage, mas as coisas começaram a ficar estranhas quando dois dos meus primos interromperam a conversa que estávamos tendo na sala (tipo: "como foi a viagem?" e coisas genéricas) entrando pela porta principal com pistolas pequenas na mão e neve nos ombros. 

"Esses sãos seus primos, Vladimir e Yan" Meu pai disse e eu cumprimentei ambos sem tirar os olhos das armas.

"Não contou pro garoto, Ygor?" Meu tio notou que não conseguia tirar os olhos das armas, ficou extremamente desconfortável, lembro da expressão marcante dele, as sobrancelhas marcantes e os olhos azuis profundos.

"O que você não me contou, pai?"

"Já ouviu falar da máfia?" No momento em que meu pai disse isso, encarei cada membro na sala, meu tio e meus primos pareciam ter saído de O Poderoso Chefão, só eram mais russos, e menos italianos.

"Tipo O Poderoso Chefão?" Quando eu disse isso meu tio soltou uma risada rouca, com certeza fruto do vício em charutos, habito que notei poucos dias depois.

"Melhor." Vladimir largou a pistola na mesa de centro. "Somos russos, temos tatuagens legais, bebemos vodka até dormir e temos as melhores prostitutas. É algo familiar, você é parte disso"

"Ele não é obrigado a fazer parte disso." Meu pai olhou pro chão, depois me olhou nos olhos. O silêncio daquele dia foi uma das experiências mais marcantes da minha vida.

"Eu posso tentar" Eu nunca me interessei pelo mundo do crime, mas pensei que talvez pudesse estar no meu sangue, eu queria fazer parte de algo.

"Sua mãe morreu por causa da máfia." Foram nessas palavras amargas do meu pai que eu conheci a morte, até então eu preferia não pensar nisso.

O resto da conversa foi revolta minha e a conclusão de que eu tentaria sim fazer parte da máfia. A história da minha mãe foi ter viajado pra Rússia, conhecer um mafioso, casar-se com ele sabendo dos riscos, sabendo que não poderia abandonar essa vida, mas enlouquecer e querer jogar tudo pro ar, sem querer entregar um membro da máfia para a polícia, voltar pro Brasil querendo distância de tudo, formar uma família, mas ser esquartejada anos depois pelo mesmo homem que foi preso por causa dela. Minha família nunca mais conseguiu localizar o cara para cobrar vingança, e por um tempo eu achei que eles continuariam procurando.

Por um mês todo andei por Moscou com meus primos, vi torturas, ajudei a traficar drogas, e refleti sobre a morte, eles me ensinaram a fumar, a usar um soco inglês, a fazer meu próprio nó de gravata, fiquei um mês longe do videogame, que até então era minha maior paixão, eu não precisava daquilo, eu tinha a adrenalina real, e eu gostei da sensação.

"Quando vai fazer uma tatuagem, moleque?" Estávamos na cozinha da casa, meu primo me questionou dando um tapinha na minha nuca, eu sorri, me sentia confortável com eles.

"Deveria tatuar um corvo no ombro, bem sua cara" Vladimir disse enquanto mastigava uma parte de um frango a Kiev enorme na mão, eu prefiro coxinha.

"Meninos, parem de encher o saco do garoto, ele é muito novo pra fazer tatuagens." Minha tia aparece na cozinha tirando seu sobretudo e colocando no encosto de uma cadeira, era uma das mulheres mais lindas que eu já tinha visto, sempre bem-vestida, de batom vermelho, delineador marcando os olhos azuis. "Tem gostado de estar conosco, Pedro?" 

"De certa forma me sinto em casa." De certa forma me sentia.

"Seu pai e você podem vir morar conosco, tenho certeza que Ivan não teria problemas com isso, nem seus avós, e seus primos gostam de te ter por perto." Eu não tenho memórias o suficiente pra falar sobre meus avós paternos, eram misteriosos e distantes, minha avó já morreu, alguns anos mais tarde, quando eu tinha 16, eu e meu pai voltamos a Rússia para o funeral, e não, não fomos morar com a tia Lana e o tio Ivan, em momento algum.

Em algum momento não específico, me dei conta de que eles não voltariam a procurar o homem que matou minha mãe, e também notei que essa era minha única motivação real e palpável pra querer entrar pra máfia, decidi que apesar de me sentir parte disso, não era meu lugar, houve uma discussão, meu tio acreditava que eu não poderia desertar da minha função como membro da família, mas meu pai não queria que acontecesse o mesmo comigo do que aconteceu com a minha mãe, renunciei minha parte da herança bilionária que aos 14 anos eu ainda não tinha muita noção de onde vinha, voltamos para o Brasil.

Foi complicado me concentrar nas aulas depois de tudo o que tinha acontecido, foi até difícil me acostumar com o fuso horário, os professores denunciaram uma estranha agressividade partindo de mim, eu me sentia sufocado, e parte de mim queria implorar pra viver em Moscou.

Meu melhor amigo, Henrique, um ruivo, tão rico quanto eu, programador e gay, foi minha salvação enquanto eu não sabia como lidar com as coisas, passei noites na casa dele, jogado na cama, enquanto ele mexia no computador, muitas vezes na deep web buscando jogos pirateados, contei cada uma das minhas experiências, e ele ouvia com atenção, mesmo achando loucura.

"Eu meio que já sabia que seu pai era mafioso." Henrique dizia tudo sem desgrudar os olhos da tela.

"Como?"

"Sua mãe morreu do nada, esquartejada, ele nunca te contou muito sobre o emprego dele, ele é russo, e é muito rico, na Rússia riqueza é sempre sinal de máfia." Ficamos em silêncio por um tempo. "Sabe, na deep web não é tão difícil encontrar informação de mafiosos, sua família tem algum programador?"

"Como assim?"

"Você me disse que sua única real motivação pra tentar participar da máfia era encontrar o assassino da sua mãe, talvez eu encontre algo sobre ele..."

    "E eu faria justiça com minhas próprias mãos?"

    "É, talvez... Quero dizer, ele merece né?" Então ele tirou os olhos da tela e se voltou pra mim.

    "Acho que não custa tentar."

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