Apanhe as cinzas

68 13 8
                                    

8 de maio de 1323, a pequena vila de Saint está agitada.

Sobre um dia frio, o sol não se vê - é como se naquele dia não tivesse nascido, as flores não estavam dispostas a acordar - ou não queriam ver o que se passaria ali e se recusavam a abrir suas pétalas, enquanto os pássaros que alegravam o canteiro em frente ao pequeno lago abandonaram a cidade em busca de alguma rajada de sol. Dia muito atípico da primavera no vilarejo francês - sempre coloridos e repleto de crianças a correr e brigar por alguns trocados roubados da caixa da paróquia. Antero, o padre da igrejinha de Santa Clara, corria pelas vielas esburacadas da cidade com a população ao seu lado, ao som de um berro coletivo.

- Queimem, queimem a bruxa!

Na Praça principal - que recebe o mesmo nome da viela, uma jovem chora a espreita da fogueira, mas o clamor dela é abafado pelos gritos de "Queimem", e o lamento sem melodia da pobre coitada se torna insignificante no meio da multidão. Dependurada num tronco, quase totalmente despida, Ema Barnei conta apenas com alguns lenços cobrindo as partes íntimas. Suas costas estão marcadas com chicotes, seu cabelo fora raspado e já quase não se vê. Um amontoado de livros se mantem abaixo de seus pés, seu rosto está erguido e sua expressão de indiferença se contrapõe ao clima presente na Praça.
As pessoas se calam perante a figura do padre Antero, que aproxima e inicia sua acusação.

- Eis aqui o mais maldito dos seres que colocou seus pés nessa cidade, a mulher que vendeu sua alma em troca de páginas malditas. O demônio trouxe sua perdição, e ela quase trouxe a perdição de todos que aqui vivem. Maldita! Será entregue ao fogo do Espírito divino, não daquele maligno que você pensou. Bruxa!

As pessoas presentes na praça gritam ofensas cada vez piores, ansiosas a ver uma mulher ter seu corpo carbonizado. A moça que chora ao lado de Ema é Ana, tem 16 anos e num ato de desespero se atira rumo a irmã.

- Não, ela não fez nada, por favor! Não façam isso!

Um gesto de uma jovem assim poderia ser comovente nessas condições, mas não foi o que aconteceu ali. As pessoas pelos arredores não ligaram nem um pouco. Mas que diabos de perjúrio ou ofensa Ema teria realizado para ser enojada daquela maneira? Seu rosto parecia não revelar muito sobre isso, mesmo com Ana chorando ao seu abraço ela o mantinha com a expressão de indiferença. Ema não expressava ódio, raiva, remorso ou qualquer tipo de sentimento, apenas indiferença. Ana não entendia e tentava se fazer notada por Ema, mas continuara com seu desespero aumentando por não entender o motivo pelo qual sua irmã, que lhe criou e dedicou os anos de sua vida em busca de uma vida melhor para elas não a percebia ali.

Padre Antero, num gesto rude, pegou Ana pelos braços e a atirou em frente aos populares para continuar a inquisição.

- Essa pobre jovem está cega pelas infâmias cometidas por essa infeliz, mas estará livre da maldição que a carrega. Este é o momento. Chega de tentar remediar o irremediável. O conselho da paróquia decidiu, o Estado está de acordo, a cidade clama e os céus ordenam que isso seja feito. Em nome do Espírito, da Igreja e de todos aqui presentes, eu, representante do divino e porta voz de sua palavra, condeno essa bruxa ao mármore do inferno!

Assim, o padre, segurando um crucifixo ordena que todos levantem a mão direita aos céus e realizem um juramento longo, em que todas suas estrofes eram de como os presentes ali apoiam o ato cometido na Praça. Pede que os fiéis pecadores se arrependam antes que o fogo também os queime a carne. No fim, a Praça Saint vibra com o discurso de padre Antero, é como se a França tivesse acabado de ganhar a guerra, a diferença era que o inimigo não era um país, mas sim, uma mulher amarrada a estaca. Ao fim da declaração, Ana se fecha em um silêncio ensurdecedor e olha a irmã em seus últimos momentos. Ema mantém a postura, enquanto o auxiliar da paróquia, o padeiro Erick, ateia fogo aos livros que estão sobre ela. Quando parecia que morreria em silêncio, Ema começa a falar ao sentir o fogo subir por suas pernas - literalmente, e entoa em seu leito de morte, já quase agonizante, suas últimas palavras.

- Vocês não tem medo do diabo! Vocês temem os próprios demônios. Aqueles que os atormentam diariamente, aqueles que estão presentes dentro dos corações de cada um! Aqueles que vocês temem que os livros revelem! As páginas que vocês ateiam fogo junto a mim tem histórias felizes, tristes, tem histórias de homens bons e homens maus, homens que fizeram coisas horríveis e justificavam seus atos em deveres maiores. O senhor queima essas páginas porque teme as palavras, teme o conhecimento que elas possuem, e agora me queima também pois eu faço parte dessas palavras. Eu manteria viva cada página dessa se vivesse! Não cometi ato algum dos que me acusam, e já que não puderam arrancar-me uma confissão, me arrancam a vida. Estou aqui pelo medo de seus segredos serem expostos. Eu queimo! Eu queimo, mas eu me liberto!

Ema abaixa o olhar e dedica com voz amena sua última frase a Ana.

- Liberte nossa família, e então seja livre!

A partir daquele momento não havia muito o que ser dito, não havia muito ao que ser discutido. Ema ardia em chamas. O fogo destruía os livros abaixo de seus pés, logo seu rosto começou a queimar. Ela gritava como um animal em um abatedouro, sua pele começou a derreter, seus poucos cabelos negros se desfaziam em chamas como palha e a sensação de dor extrema não lhe dava forças nem para desejar a morte.

Ana continuava a olhar firmemente a figura de sua irmã em chamas, sem reação.

Logo, a sensação de prazer pela condenação de Ema era finalizada, as pessoas daquela cidade desviavam o olhar. Não tinham estômago para assistir o que provocaram, não era como querer ver uma mulher ser queimada, era uma mulher queimada. Ana foi a única que ficou até que sua irmã desse o último grito, o último suspiro, até que o último pedaço de sua pele fosse carbonizado. Ela começa uma crise de choro, olhando para o chão, sem forças para se levantar, até que olha para os céus e se ergue, segue caminhando para o que sobrou do corpo se sua irmã, tropeçando em suas próprias pernas, enfia as mãos no meio das cinzas do que um dia foi Ema e coloca o que consegue apanhar dentro de um pote de água que estava preso à cintura. Ana se levanta e olha para a caveira da irmã, em sua cabeça ela se questiona, as dúvidas são infinitas, não sabia se a irmã era inocente ou realmente era uma bruxa, seu coração lhe dizia que Ema havia sido injustiçada, enquanto a última frase de sua irmã em sua direção martelava em sua cabeça. À partir daí, com Ema inocente ou culpada, vítima ou causadora de sua própria desgraça, Ana não se importaria e faria naquele momento uma promessa a si mesma e a caveira de sua irmã.

- Não sei de muitas coisas, mas sei do amor que sentíamos uma pela outra, por isso eu prometo que irei atrás das verdades escondidas entre suas palavras, descobrirei quais são os medos que essas pessoas tanto temem e farei com que sejam expostos, farei com que paguem.

-------💓 Pode votar no capítulo?🌟-------

Ana BarneiOnde histórias criam vida. Descubra agora