1 ⋆ A lenda da nascente

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Eu estava sentada na beirada da cama pequena, e a luz do quarto diminuto era amarelada e esmorecida. Arrumando minha grande mochila, vi de esguelha quando meu amigo recostou-se na porta com um suspiro, os braços cruzados no peito e os olhos escuros presos em mim. A madeira do batente rangeu um pouco, rompendo o silêncio brutal do cômodo antes que as palavras o fizessem.

— Você sabe que está procurando por algo que pode nem mesmo existir, Selene. — Zavian disse num tom baixo e receoso.

Eu virei para encará-lo e meus olhos fisgaram os seus, afiados como uma faca. Sabia que ele não concordava com minha empreitada, mesmo que tivesse feito questão de me acompanhar até Swimor, uma terra gelada e distante no norte do planeta. Havíamos viajado milhas até ali, atravessando cidades reféns do frio e longas paisagens brancas imaculadas, tudo para que eu pudesse encontrar Lys, minha irmã. Ela havia desaparecido naquele lugar muitas semanas antes, buscando pelo objeto de estudo da sua vida inteira e sua verdadeira paixão: o Limbo — ou como chamava o povo de Swimor, a Nascente dos Mundos.

Segundo uma antiga lenda nativa, o Limbo era a ponte entre o infinito do céu e a terra, onde tempo, espaço e luz não existiam, e a matéria escura da qual o universo era feito se abstinha das regras dos nossos minutos. Lá, nasceriam as galáxias, os planetas e até os buracos negros, e muitos aventureiros mergulhavam num caminho desconhecido à sua procura.

Eu nunca havia entendido a obsessão de Lys por aquele lugar até perdê-la para ele. Na última vez que ouvira a sua voz, ela me disse estar perto do que sempre procurou, desligando sem mais explicações. Se ela havia encontrado o Limbo ou não, eu nunca soube, mas viva ou morta, precisava tentar achá-la. Meus olhos precisavam olhar para o nada para que meu coração conseguisse aceitá-lo como tudo que eu teria dela, mesmo que para isso tivesse que mergulhar na matéria da qual os sóis eram feitos.

— Sabe que não precisa vir comigo, se não quiser. Você já veio até aqui e eu jamais poderia te pedir para me seguir daqui em diante. Eu só não desistirei, não agora. — Eu disse, firme, fechando a mochila cheia de itens de primeiros socorros, comida, água, cobertores térmicos e tudo que pudesse evitar uma morte lenta naquela terra gelada.

Zavian balançou a cabeça como quem desiste de algo, abrindo um sorriso fraco no rosto enrubescido pelo frio. Sua pele bronzeada estava pintada de vermelho no nariz e nas bochechas, maltratada pelo clima e ar gélidos de Swimor. Ondas de cabelo escuro caiam um pouco em seus olhos, pela primeira vez descobertas da touca desde que havíamos chegado. Eu o amava com as roupas leves e mangas curtas do verão, mas, ainda assim, coberto por camadas e camadas de tecido, Zavian parecia atordoadamente bonito. Não importava quantos quilômetros de gelo havia sob nossos pés, seus olhos permaneciam quentes e acolhedores, mesmo quando agora se aproximavam de mim cheios de preocupação.

— Selene... — Ele chamou baixinho, levantando meu queixo suavemente para que eu o fitasse. Estava de pé na minha frente, erguido muitos centímetros acima de mim sentada na cama. — Eu iria com você até mesmo ao inferno, que dirá ao céu — emendou com a voz tranquila e um sorriso sereno, afagando minha bochecha com seu polegar frio.

Eu fui capturada pelo momento, esquecendo por um segundo apenas o que tínhamos que fazer. Zavian tirou uma mecha de cabelo loiro do meu rosto e abaixou-se para beijar minha testa, se afastando um pouco em seguida.

— Vamos, é melhor irmos logo se quisermos pegar os únicos cinco minutos de sol que teremos aqui. — Ele brincou, indo em direção à mochila da nossa barraca.

Eu assenti, levantando para ajudá-lo. Realmente precisávamos partir, pois o período de luz era curto naquela latitude e, na maior parte do tempo, a noite tomava conta do horizonte. Mesmo quando o sol aparecia, ele era fraco e cinzento, como se tivesse preguiça de brilhar no lugar. 

Depressa, nós nos despedimos do calor do quarto e pagamos por nossa estadia à dona do estabelecimento, uma senhora platinada e pálida. Ela nos recebeu em total silêncio, rapidamente enfiando o dinheiro nos bolsos. Seu olhar era cinzento e indiferente, mas atento. Ela não havia nos dito uma palavra desde que havíamos chegado, e eu desconfiava que não entendia nosso idioma.

— Boa sorte. — Ela disse de repente, com um forte sotaque, contrariando minhas expectativas. Eu arregalei um pouco os olhos, surpresa. — As pessoas não voltam da Nascente... a última viajante não voltou. Talvez juntos tenham mais sorte — falou, levantando-se da sua cadeira velha e dando-nos as costas para partir.

— Espere! — Eu pedi, todo meu corpo tremendo ao atentar às suas palavras.

A senhora parou e virou-se devagar, a expressão numa carranca.

A última viajante... e se fosse Lys? 

— A última pessoa que esteve aqui, quem era ela? — Eu indaguei rapidamente, meus olhos denunciando minha ansiedade.

— Muitas pessoas como vocês vêm aqui, não lembro. — Ela respondeu, ríspida.

— Não tem o nome dela anotado em algum lugar? Talvez em algum registro dos hóspedes. — Zavian sugeriu.

— Não. — Ela falou secamente de novo. — Não há registros. Se eu anotasse os nomes dos que dormem aqui, o papel viraria um cemitério. Se procuram alguém, não tenham muita esperança. — continuou, virando-se outra vez. — É melhor irem logo se quiserem pegar o sol. — E se foi pelo corredor, embrenhando-se num quarto.

Eu respirei fundo, sentindo meu corpo enfraquecer de decepção e tristeza. A mão de Zavian segurou a minha pelas luvas, a envolvendo num abraço quente.

— Vamos, Sel, está tudo bem. — Ele murmurou, guiando-me para fora da hospedagem.

Quando saímos do estabelecimento, um vento frio e cortante encontrou nossos rostos. Eu respirei o ar gélido e ajeitei o caderno de Lys nas mãos trêmulas, sentindo repentinamente o peso da mochila nas costas. Li as anotações da minha irmã — talvez pela quinquagésima vez naquele dia — e olhei para o horizonte, identificando nosso destino: a longa cadeia de montanhas distantes, os Montes Kijet. A lenda dizia que as montanhas protegiam o Limbo e a única passagem para ele, como os guardiões da fortaleza de um rei. Havia ainda um astro no céu, uma grande estrela vermelha que brilhava dia e noite e guiava o trajeto até Kijet. Ela era uma deusa sem nome e sua luz mostraria a entrada do caminho para o Limbo.

— Está ali! — Apontei para as montanhas brancas e brilhantes. Seus cumes estavam escondidos por nuvens que pareciam uma continuação do céu. — Temos que chegar lá, encontrar o caminho e atravessar os Montes. E ali está a estrela — repassei, identificando o astro avermelhado na direção de Kijet.

Eu suspirei e encarei Zavian. Já havíamos repassado aquela rota inúmeras vezes, então, silencioso, ele apenas assentiu e começamos nossa caminhada.

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