mãe,
eu quero que você saiba uma coisa.
eu nunca sei como falar nada nem nunca soube como usar palavras corretamente. você diz que eu devia fazer direito pois escrevo bem, mas discordo. na verdade, só acho que enfeito demais meus textos e uso palavras bonitas só pra deixar um clima de pomposidade no ar, pois o que sinto é que nunca soube me expressar bem. palavras as vezes são minhas piores inimigas. mas acontece que as vezes escrevo para me sentir bem... apesar de não fazer com tanta frequência por esse motivo.
acho que comecei a enrolar.
bem, eu não sei como falar nada com você e sinto que com o passar dos anos acabamos perdendo nossa conexão mãe-e-filha. você fala de como você e vovó eram amigas inseparáveis na minha idade e que fala que não posso ser como minha tia que desprezava a mãe e hoje se arrepende. de verdade, eu não desprezo você. eu só tenho medo.
porque ainda gravo muito bem as memórias péssimas de ameaças passadas. de que se houvesse em casa uma "filha sapatão" não mataria para não ser presa, mas agrediria; que colocaria pra fora de casa, que jamais aceitaria ou reconheceria como filho. me falaram que seja da boca pra fora, mas eu, muitas vezes, discordo. talvez você não lembre, mas eu me recordo bem. das falas, do tom de voz, do dia, até dos semblantes dos meninos. todos sempre dentro do carro, e eu sentado no banco da frente. sabe, mãe, eu não sei se esse jeito seria o melhor de todos para educar um filho. talvez seja arrogância minha ou eu não estou vendo pelo seu lado, mas eu não acredito, de verdade, que esse seja um modo bom. quando você ameaça alguém dentro da própria casa, especialmente alguém vulnerável.
talvez você não saiba, mas eu lido com depressão desde os meus doze anos de idade. se contarmos, tem quase sete anos no processo. você provavelmente fará pouco caso se souber porque não aceita ter nenhum "filho problemático" dentro de casa, mas é a realidade. desculpa se não gosto de ir à igreja nem costumo rezar na mesma intensidade que você, mas é que eu não me sinto confortável num ambiente que diz estar disposto a me curar, e eu tenho medo do que quer que queiram fazer comigo lá.
mas o que eu quero dizer talvez não tenha relação com o que eu citei nas 385 palavras atrás.
eu queria dizer que você estava certa e que minha negação toda nos últimos dois anos foi só mentira. sim, eu sou trans. eu sou um garoto trans. eu me vejo assim, eu me sinto assim, eu quero ser tratado como tal. eu sei que você não vai nunca aceitar, e é por isso que eu escrevo com o propósito de que isso nunca chegue em suas mãos.
isso tudo é mais um desabafo. eu só queria dizer de verdade que sim, eu sou um menino. que é assim que eu sou, que me vejo, que me sinto e etc. eu não quero mais aceitação sua ou de qualquer parte da família. eu só quero que me respeitem, um dia pelo menos, para eu poder sair e respirar em paz, sem ter que ficar na defensiva o tempo todo e com medo de qualquer coisa.no meio tempo dessa escrita, algo aconteceu nessas pouco-menos-de 24 horas de intervalo. eu não quero revisar o que escrevi, então desculpa se soar como um disco arranhado, mas eu não procuro sua aceitação. não faço nada para lhe chocar, nem magoar, nem nada. mãe, entenda, eu só quero ser livre. você possui amarras e demonstra seu dito amor duma maneira que me fere imensamente.
entenda, mãe, você me prende. quando você fala em tom irônico que minha magreza e minha falta de cuidados comigo mesmo é "depressão" (o que sabemos que é), você me fere. eu não venho mais aguentando suportar todo esse peso em massa da maneira que você me faz. eu só não aguento por tantos anos ter de lidar com tudo isso e não sei por quanto tempo mais terei de aguentar, porque sei que um dia vou atingir meu limite, e sei que quando isso acontecer não vai ser legal, porque não faço ideia do que irá acontecer. então eu peço que, por favor, eu sei que você não me aceita, ou me quer, ou me ama, então pelo menos me respeite. me deixe respirar um pouco e ter a mínima liberdade que nunca pude ter. isso é cruel demais.do seu filho, que um dia te amou e talvez não sinta tanto amor agora
rafael
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