Três

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Dessa vez, a chuva havia cessado. Mas alguns relâmpagos iluminavam o céu vez ou outra. O frio continuava intenso e, talvez, aquele roupão chumbo tivesse de ser trocado pelo de algodão verde.

Essa noite, nitidamente mais iluminada quando a lua cheia escapava entre as nuvens pesadas com todo seu esplendor, pedia outra xícara de chá verde. Precisava de energia, já que o sono resolveu vir mais cedo e ela já soltava vapor, apoiada em um porta-copos velho.

Buscou na segunda gaveta uma vela nova e não era a branca comum, era aquela decorada que ganhara há anos. Hesitou, observando o cilindro de tamanho médio grosso preto com desenhos de flores: uma vela de sete dias. Esperava terminar as leituras em sete dias, mas não sabia quantos envelopes ainda restavam. 

Com um suspiro derrotado, colocou o presente antigo na mesa e abriu a primeira gavetas, retirando os relatos e uma caixa de fósforos. Antes de abrir a próxima "aventura", anotou mentalmente que precisava reabastecer seu estoque de velas, agora que usaria com um pouco mais de frequência.

Molhou os lábios finos com a bebida e rompeu a cera do envelope sem muita força.

Olá novamente. 

Espero que tenha respeitado o primeiro parágrafo da última carta, não vou repetir tudo. E não esqueci que devo passar-te as instruções caso alguém se atreva a pegar esses relatos.

Como deve ter percebido, esse papel não tem data e é proposital. O que contarei agora não diz respeito a mim ou a minha existência. Pode ser um equívoco, mas acho com franqueza que pouco falei de minhas famílias.

Não me refiro à fortuna deles, temo já ter falado deveras de dinheiro e, como já disse, não é o epicentro de minha vida. Mas me refiro a eles em geral.

A família Várhez, como já mencionado, era composta por mãe, pai e o casal de gêmeos. O mais velho era advogado e seu pai também foi, então não seria surpreendente que meu pai seguisse a tradição. A senhora Várhez, minha avó, era professora de história ou geografia... Já não me lembro bem, ela não dava aula na escola em que me colocaram. 

Minha tia era uma mulher de beleza distinta, alta e de pele pálida. Com cabelos longos, pretos e lisos que delineavam suas curvas suaves ressaltadas pelos vestidos justos. Os olhos eram brilhosos, escuros e deveras profundos. Tinha muitos pretendentes, todavia nenhum se atrevia a enfrentar a sua seriedade fria e os que se atreviam eram rejeitados com firmeza. A senhorita Várhez era muito determinada e desejava trabalhar com cinema, rompendo a ideia conservadora de ser dona de casa.

Já os Redclock tinham minha mãe como única filha, mas não como filha única. Tenho três tios que já não moravam com os pais quando nasci. Um seguiu o caminho das fazendas, herança de longa data no nome dos Redclock; outro seguiu para a política, fazendo sucesso e fortuna em outro estado; e o terceiro queria ser um escritor famoso mundialmente. Se ele conseguiu? Nunca soube. Minha mãe sabia bordar e eu acho que já deixei isso bem nítido. No fim, ela é a única que não tinha um emprego, porém seus bordados eram disputadíssimos e muito caros. Afinal, eram bordados Redclock.

Nunca tive muitas informações de meus tios, não eram muito presentes ou talvez não gostassem de mim. Suas esposas chegaram a nos visitar uma ou duas vezes, se não me engano, e seus filhos nunca me interessaram muito. O senhor Redclock era um grande militar, general ou algum outro cargo maior, e ganhava muito na época. De feições duras, cabelos curtos de um marrom claro e olhos cor de mel escuro. Era muito sério, porém demonstrava amor por sua esposa e por sua filha, como se deixasse o fardo de militar da porta para fora.

A senhora Redclock era dona de casa e era encarregada da educação de minha mãe. Tinha um temperamento difícil e não admitia muitos erros banais, mas não pense que ela era agressiva. Minha avó só era... Ela.

E se você, pessoa que está lendo, tem uma memória um pouco boa, deve se lembrar que citei há alguns parágrafos sobre fazendas. Nossa família já as visitou e como fui feliz ao correr por aqueles campos tão grandes. Oh! Cheguei a perder-me umas duas ou três vezes naquelas colinas verdejantes, minhas risadas foram tão infinitas enquanto rolava pela relva macia. Tinha plantações também e de tantas coisas que sou incapaz de nomear!

Lembro quando minha mãe fez um doce de laranja em nossa estadia por lá. Os dias pareciam amanhecer mais bonitos, as noites eram mais vistosas e as auroras eram de encher os olhos das pessoas mais carrancudas. E nas fazendas eu podia fazer o que mais gostava: me isolar com os meus pensamentos e ficar distante daqueles que considerava não gostarem de mim.

Bom, acho que já falei demais nesse relato. Temo que esteja no tédio com tantas baboseiras e meu tempo é contado. Espero não ter esquecido de nenhum detalhe importante sobre as famílias que me colocaram no mundo. 

Conto com a sua presença no próximo relato?

Bufou com sono. "Mais uma carta sem identificação precisa", pensou com um misto de cansaço e curiosidade, "Acho que é minha hora". Os dois quartos para uma costumeiros já batiam na parede e a xícara já esfriava vazia.

Através dos vidros bem limpos, as árvores lançavam sombras de seus braços retorcidos sobre o jardim como serpentes enormes e ameaçadoras rastejando até a casa. Ao longe, no portão exterior, uma lâmpada acesa balançava ao vento.

Apagou a vela depois de guardar os papéis. Aquela pergunta dos fins das cartas martelava seus pensamentos desde o dia que começou sua leitura. "Por quê? Por que ninguém mais pode lê-las? O que eu preciso fazer se alguém pegar aqueles relatos além de mim?", cobriu-se sem retirar o roupão, estava frio demais para isso.

O efeito do chá verde trava uma batalha forte contra a fadiga, a insônia cutucava o fundo de sua mente junto com muitas dúvidas. Porém o trabalho vence os outros oponentes, pesando sobre as pálpebras.

Nessa noite, ninguém passou por sua janela.

Nem todas as cartas são de amorOnde histórias criam vida. Descubra agora