Lobos

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Entre paredes, colado 

Sou eu e um dado: 

Vivo de mim apartado. 

Nos quatro lados

Um gozo de alacridades: 

Ventura de ser lançado

 No seu túnel de funduras.

Compreendera apenas naquele instante. E agora não mais? Lembrava-se perfeitamente de tudo. Fora como sempre até o topo daquela pequena colina. Gostava de estar lá pois ainda se viam uns verdes pardacentos, um lagarto apressado atravessando um atalho, e se voltava as costas para o edifício da Universidade via lavouras de algodão e de café. Ali ficava apenas olhando. Esvaziado. Algumas vezes pensava no seu modesto destino. Tivera ilusões? Jovem, desejou uma não evidência demonstrada, uma breve e harmoniosa equação que cintilasse o ainda não explicado. Palavras. Essas eram as teias finíssimas que jamais conseguira arrancar perfeitas inteiriças da massa de terra dura e informe onde jaziam. Não queria efeitos enganosos, nem sonoridades vazias. Criança, nunca soube explicar-se. Um furacão de perguntas quando o passeio tinha sido um nada, até ali mais adiante pra ver o cachorro do sítio vizinho ou o bando de periquitos voltando naquele resto de tarde, fui até alimaisadiante, só isso. Diziam: por quê? Pra quê? Que cachorro? A esta hora? Ver o que no cachorro, que periquito? Eu respondia: Ali mais adiante porque são bonitos. Ficava todo vermelho repetindo as palavras ali mais adiante porque são letras unidas, encadeadas, pequenas ou extensas palavras, arrancar de dentro de si mesmo as teias finíssimas, inteiriças que ali repousavam? Estavam ali, sabia, mas como arrancá-las? Tudo se desmancharia. Gostava de ler poetas japoneses. Um deles, Buson, tem um poema assim: Olhai a boca de Emma O! Parece que vai cuspir Uma peônia! Poesia e matemática. Rompe-se a negra estrutura de pedra e te vês num molhado de luzes, um nítido inesperado. Um nítido inesperado foi o que sentiu e compreendeu no topo daquela pequena colina. Mas não viu formas nem linhas, não viu contornos nem luzes, foi invadido de cores, vida, um fulgor sem clarão, espesso, formoso, um sol-origem sem ser fogo. Foi invadido de significado incomensurável. Podia dizer apenas isso. Invadido de significado incomensurável. E como foi a noite anterior? Sua mulher, a singular Amanda, galopava o quarto de um canto a outro, seus braços morenosos alçavam-se e despencavam agitados: Amós, número é bom quando se tem conta no banco tá? A camisola é verde-pálido, de jérsei, esse que fica colado nas tetas, na barriga, ele pensa eu não podia ter casado nem ter tido filho algum, o filho entra no quarto: mãe, o pai que é bom de aritmética, diz pra ele fazer esse problema aqui. De jeito nenhum eu digo. Toco-me. Estou de pijama também verde-clarinho. Ela tem mania de combinar cores. Olho para o espaldar da cama. No centro um círculo de tecido ramoso. Que cor? Verde-clarinho. Sinto um pouco de enjoo. Deviam dinamitar todas as camas. Esta. Olho o dorso das mãos, as veias parecem mais saltadas, penso no que estas mãos poderiam ter feito. Carpintaria teria sido bom. Mesas cadeiras oratórios por que não? Estaria ajoelhado agora? Catres. Uma só pessoa é que cabe num catre. Esses estreitos. O menino começa a chorar. Eu digo dá logo isso. Amanda: coisa nenhuma, faz o problema sozinho e quer saber? Tá na hora de deitar. O menino continua chorando. Que engodo tudo isso de filhos e casamento, penso um tiro no peito e a outra fica aí galopando eternamente com sua camisola verde-clarinho, suas tetas, suas coxas. Um tiro no peito. É preciso amar, Amós, afinal é tua mulher, é teu filho. Vai deitar, filho, faz sozinho que é melhor pra você. O menino sai. Vem cá, Amanda. Não vem. O discurso é extenso. Ficaram-me alguns trechos: jantar, casa de amigos, restorantes, dançar às vezes por que não. Amanda entediada. Os braços continuam sua batalha mania de dançar. Ele enredado com Deus, nos abismos (era filósofo) e elas querendo dançar. Tento fazer com que Amanda se deite. Ela quer continuar discursando. Um tiro no meu peito ou no dela? Digo-lhe que discurse deitada. Ela enfim se deita. Entre eu e Amanda o quê? O que são sentimentos afinal? Como é que vão-se embora assim sem um fio de vestígios? Alguma vez estiveram ali? Afinal tudo deixa um certo rasto. Na morte ossos, depois cinzas. Vestígios na urna. O passo de alguém. Aquele estava de tênis. Aquele, de botas. Olha a marca do taco aí. Fios de cabelo que ficam por toda parte. Dentes guardados. Não acabam nunca se guardados. Na boca apodrecem. Na caixinha de metal aquele dente lá, para sempre. Teu dentinho de leite, vê, filhinho. E o marmanjo com cinquenta. Aquele dente ali. Forever. In aeternum . Onde é que você vai, Amós? Vou pegar aquele meu dente na gaveta. Agora? Agora sim Amanda. Abro a gaveta e espio. Está ali. Pois não vai estar mais. Vou até a privada. Puxo a descarga. Vai indo pelos canos, presumo, vai indo, depois na fossa? Para sempre na fossa? Ou fica roído como se ficasse na boca? Fossa-boca. O que você fez, Amós? Boca-fossa. Cossa. Responder aos demais. A alguns. Esquecer os "consideremos" "por conseguinte" "suponhamos" "daí que se deduz" e tentar a incoerência de muitas palavras, de início soletrar algumas sigilosamente junto ao coração, por exemplo Vida, Entendimento, e se a pergunta vier, despejar o tambor de latão em cima daquele que pergunta, morreu é? morreu de letras. Como assim? Ora, perguntou algo a alguém matemático e o cara que não falava há anos só número, sabe, verbalizou hemorragicamente. Quê? Isso mesmo, golfadas de palavras. O outro não aguentou. O cadáver mais letrado que já vi, uma beleza, cara, escurinho de letras. Vamos indo. Aos vinte Amós levava os livros pro bordel. Cálculo infinitesimal. Topologia. Que calmaria aquilo de manhãzinha. E ali havia também Libitina que era rara. E a dona, Maria Ancuda: pode ficá meu lindo, fica fica, fica estudando, só que depois tu dá uma mãozinha praquele meu contador que é uma besta. E Libitina. Ai. Teu nome é Libitina mesmo? É sim, confundiram com outro.

Com Meus Olhos de CãoOnde histórias criam vida. Descubra agora