Estava chovendo quando ele se levantou. Torrencialmente. Ele gostava da chuva, e combinava com o que estava planejando pro dia, não haveria ninguém nas ruas.
Tomou um banho e se arrumou sem pressa. Pegou a capa de chuva e saiu. Ele andava com calma pelas ruas desertas, embaixo da chuva. Não havia necessidade de pressa, ele já tinha tomado a decisão e estava em paz com isso. Refletia sobre como chegou até ali enquanto passava em frente a casas fechadas e silenciosas, com pessoas que não sabiam da sua existência e nem de suas divagações.
Ela teria algo a dizer sobre toda essa melancolia, algum comentário sarcástico ou irônico como sempre fazia. Ela detestava essa aura gótica que ele sempre teve, embora tenha dito uma vez sem perceber que achava isso um charme à parte.
Havia sido num dia chuvoso como o de hoje que eles haviam se conhecido, no meio da ponte sobre aquele rio do nome difícil. Ele havia parado e observava o rio, pensando se era realmente a hora, quando não sentiu mais a chuva. Um guarda chuva transparente havia sido colocado sobre ele, e ela o olhava de um jeito que demonstrava tristeza e preocupação. Reclamou sobre ele estar na chuva, dizendo que iria adoecer se continuasse, então o acompanhou de volta pra casa enquanto não parava de falar nem por um instante. Ele só a observou, levando aquilo como um sinal de que ainda não era hora.
Se encontraram novamente no ônibus dois dias depois, e ela o obrigou a passar seu telefone. Ligava todos os dias, e só ela falava a maior parte do tempo, e ele se apaixonou por aquilo. Passou a levar flores pra ela no trabalho, deixava os doces favoritos dela escondidos entre os objetos, escrevia em post-it e deixava na carteira ou no livro que ela estava lendo, e assim ela também se apaixonou.
Viveram três anos juntos na casa dele, três anos de amor e cuidado, de carinho e felicidade, e de brigas e implicância também. Três anos em que os fantasmas ficaram no sótão, sendo quase esquecidos por ele. Mas eles sempre estiveram ali, o rondando, só esperando uma oportunidade, uma falta de luz para voltarem. Fazia um mês que a luz havia ido, um mês que ele tentava espanta-los, mas ele já não aguentava mais.
Parou novamente no meio da ponte, a mesma de três anos atrás enquanto olhava para as águas do rio de nome difícil. Hoje não haveria guarda chuva transparente, nem alguém o olhando com preocupação. Houve um ultimo pedido de desculpas jogado ao vento, e ele pulou, percebendo que todos os fantasmas se calavam conforme o fim se aproximava. Choveu durante todo aquele dia, mas fazia sol quando ele foi enterrado, que projetava formas coloridas ao bater no material transparente do guarda chuva que havia sido deixado sobre a lapide.