"Música acima de qualquer cousa,
E prefere o Ímpar, menos vulgar,
Que é bem mais vago e solúvel no ar,
Que nada pesa e que em nada pousa.[...]" Paul Verlaine em Arte poética
O segundo semestre de aulas da faculdade começou mais cedo do que eu pensei, mas eu adorava seu horário, 8:15 era abençoado, podia dormir tarde da noite e ainda acordar para me vestir ao alvorecer, sentindo o sol procurar minha pele pelas fendas das persianas, sempre me interessei pela sua insistência de distribuir luz até nos lugares onde não se espelha, mesmo no frio, mesmo no coberto, mas era insistente, insistiu tanto que todo mundo quis girar ao seu redor, receber e precisar de seu calor. Naquela segunda feira os sons de casa foram unicamente os sons de casa, não liguei o toca-discos ou o rádio, nem cantei no chuveiro ou liguei a tv em algum desenho, porque os sons daquela segunda feira eram os sons preciosos de mais uma manhã de férias para Julia e Amanda, que dormiram na sala com alguma fantasia da Disney. Deixei um desenho antigo ao lado de nossas fotos na geladeira como bom dia para elas e então sai de casa com os sapatos na mão.
Calcei os sapatos no elevador e conversei com meu reflexo nos rápidos 8 andares para baixo.
"Você está bonita." Me despedi dele com um sorriso antes de sair às ruas, ele foi tão gentil.
Não era frequente, mas às vezes tomava café na padaria da esquina, normalmente entrava porque só isso poderia acalentar um pouco das minhas muitas saudades de colo e de casa com nome de rua, mas dessa vez entrei apenas para tomar o café, o café adocicado de nostalgia, e o sonho marejado com infância, senti falta da voz de minha vó e de ouvir ela falar enquanto eu ainda era pequena para dormir no banco de trás do carro. Ela tem uma voz igual a uma tarde e seu pôr do sol, queria que ela estivesse do meu lado naquela padaria, olhando para mim, esperando pacientemente o tempo que fosse para eu comer devagar e ainda com comida na boca enquanto eu falava entusiasmada sobre alguma coisa nova, eu costumava falar mais naquela época também. A minha vó é realmente encantadora, ela parece ter todos os pensamentos nunca pensados por trás daqueles olhos suaves e toda a sabedoria de Salomão nas mãos que digitam rápido no celular ou computador, ela é diferente de qualquer um, ela nunca esconde nada, mas ainda é tão misteriosa, acho que foram os livros, os romances, os suspenses e as poesias, mas sinto que ela é um livro cheio de entrelinhas, um ícone de cinema italiano.
Fiquei batutando nas memórias do passado só por mais um tempinho, antes de pagar e pegar uns pãezinhos de queijo para mais tarde. Corri para a estação e como eu disse 8:15 é um horário abençoado para a faculdade, assim 7:15 a estação de Conceição me dava espaço para me sentar e aproveitar a leitura e a música que tocava pelos fones recém colocados.
Em toda estação, mesmo depois de um semestre inteiro nessa mesma rotina, era inevitável que eu ainda olhasse para portas e o painel acima dela toda vez que os autofalantes anunciavam a próxima estação, conferia se não havia me perdido na leitura e ido parar longe de mim. As portas se abriam e pessoas seguiam seus caminhos, entrando ou saindo do vagão, das que me acompanharam na viagem tinha esse moço asiático, que sempre me fazia esperar uma estação antes de vê-lo e saia uma estação antes de mim, era sempre assim, uma estação depois e uma antes, como uma valsa. Por me encontrar com esse rosto tão charmoso, ainda que ficasse tempos sem vê-lo, ainda sentiria falta de reviver sua aparência em mim, e as vezes ainda tentava desenhar aquele rosto conhecido sem nome, vê-lo lá de novo era uma voz do vento dizendo que nada mudou, e eu gostava. Quando ele chegava se sentava ao meu lado, no assento que pousava em frente a porta, sua proximidade me perfumava com fragrância de banho e seu rosto era bonito como as manhãs e as noites, também tinha esse estilo no andar e mesmo que ainda interrogasse minha imaginação atrás de alguma pista de quem ele poderia ser, ele parecia tanto e tudo, e eu nunca cheguei a lugar nenhum.
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In These Streets
FanfictionCheia de dúvidas não conhecidas não procurei por você, mas nos encontramos no acaso de um vagão rápido, sem me conhecer confiou-me seu coração aberto, o tesouro escondido e as pérolas que sua alma criou. Nem sequer soube meu nome para adivinhar meus...