Charlotte acordou.
Um inconveniente e solitário raio de Sol aproveitou a pequena fenda na cortina escura e adentrou o quarto da moça, atingindo em cheio os seus olhos. "Mas será que até nisso eu tenho azar?", ela murmurou, enquanto acordava. Era mais um dia de Sol. Mais um dia igual ao anterior.
Visto que a janela ficava ao lado da cama, Charlotte pensou em fechar a cortina completamente (coisa que deveria ter lembrado de fazer à noite) e voltar a dormir, como de costume. Entretanto, decidiu, num raro momento de disposição matinal, que iria "viver" aquele dia. "Há tanto a se fazer... mas será que vale o esforço?", ela pensou, ainda segurando a cortina de sua janela, sentada na cama, na companhia daquele raio de Sol. O sonho de se tornar adulta e morar sozinha em seu próprio apartamento não aconteceu exatamente da forma que planejara. Parecia muito mais divertido enquanto era apenas um sonho.
Agora, era necessário pagar o aluguel. Pagar a luz. Pagar a água. Pagar a conta do celular. Da Internet. Pagar para comer. E de onde viria o dinheiro? "Do meu glorioso trabalho! Da minha excelente vida profissional!" - eram as respostas que ela se dava enquanto criança e adolescente.
Estava tudo traçado em sua vida: assim que tivesse idade, Charlotte começaria a trabalhar e ganhar dinheiro, juntaria tudo o que fosse possível e a sua primeira ação seria comprar um apartamento no centro da cidade, para ficar perto de tudo e ir para onde quisesse; dormiria tarde todas as noites, conheceria todos os pubs e bares da região e seria forte o suficiente para encarar o emprego "dos sonhos" no dia seguinte.
Pois é. O problema é que o emprego "dos sonhos" nunca aconteceu; ao ficar adulta, descobriu que não tinha tanta disposição assim para fazer todas as coisas que gostava e queria fazer, pois o trabalho consumia boa parte de sua energia. E as coisas nem sempre davam certo no horário do expediente: às vezes, saía de lá com uma vontade imensa de chorar, perguntando-se se era mesmo necessário ter que aguentar tanta pressão vinda dos chefes e dos colegas de trabalho. Fazia tantas coisas certas, mas apenas as erradas eram reconhecidas. Outras vezes, somente chegava cansada em casa, depois de um dia cheio de tarefas repetitivas ou de problemas dos outros para resolver, depois de enfrentar todo aquele trânsito, toda aquela multidão de pessoas no metrô ou no ponto de ônibus com o mesmo objetivo: sair logo de onde estavam, numa busca desenfreada para chegar em algum outro lugar, o mais rápido possível. Uma verdadeira fuga, física e metaforicamente.
Durante a faculdade de Música, a coisa só piorou: o cansaço triplicou e o dinheiro quase sumiu. Para a sua sorte, seus pais a apoiavam em suas decisões e nunca deixaram de ajudar. Charlotte, inicialmente, não quis aceitar a ajuda, pois havia recém-descoberto a "vida independente" e desejava continuar assim. No entanto... chegou a um ponto de que era isso ou deixar tudo para trás. Descobriu que seguir os sonhos e "batalhar muito" para alcançá-los era mais bonito nas palavras e histórias motivacionais do que na prática. Percebeu que estava fazendo papel de boba. Se ela podia receber ajuda, por que recusar? Não havia prêmio de consolação para os sofredores. Não havia bônus para aqueles que ultrapassavam seus próprios limites apenas para não se tornarem o "comentário maldoso" da família. Havia apenas dor e alguma compensação psicológica por dizer ao mundo que era independente.
E isso não valia a pena. Aceitou receber ajuda financeira dos pais e conseguiu se manter... mesmo sabendo que grande parte das pessoas não tinha essa sorte. Afinal, a maioria daqueles que conseguiam alcançar seus objetivos possuía algum suporte financeiro ou familiar. Era assim que as coisas funcionavam. Na faculdade, observava alguns colegas que não sofriam nem a metade do que ela, mas que conquistariam o mesmo diploma, com o mesmo título, no mesmo dia que ela. Foi então que decidiu parar de sofrer.
E essa decisão se repetiu naquela manhã, em seu quarto, enquanto relembrava seus momentos menos gloriosos da vida. Charlotte acreditava que o sofrimento desapareceria depois da graduação, que tudo iria melhorar. De fato, houve uma parte que melhorou: não precisava mais fazer todos aqueles trabalhos, nem as provas, não havia mais a pressa de chegar à sala de aula no horário, o dinheiro para a mensalidade, alimentação, atividades acadêmicas, condução... Enfim, foi um alívio enorme quando tudo terminou. Ela sempre foi de se dedicar muito, até mais do que era necessário. Mas não sentia que recebia a recompensa que gostaria. É claro que aquele título tinha, sim, importância para ela... mas não seria ele que a levaria em direção aos seus verdadeiros sonhos.
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Sonhos de Sangue
Mystery / Thriller"E, então, acordou. Mas já não estava mais no mesmo lugar. Eram outros cheiros, outros rostos; outros sons, outra música - nem mesmo a textura da cama era igual. Era outra era". Charlotte possui a mesma vida típica da maioria das histórias vividas a...