Capítulo 2

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O tempo passava, e ela continuava o seu trabalho, sempre evitando aquele rapaz. O jovem que amava viver.

Conforme os dias corriam, ela começou a sentir um desconforto que nunca sentiu antes. Mas quando se aproximava dele, nas vezes em que o coração dele estava prestes a parar de bater, o desconforto desaparecia.

Ela o observava sempre que podia, preocupada com o que poderia acontecer caso não o levasse logo, algo assim nunca havia acontecido antes. O tempo dele já se encontrava esgotado, mas o sorriso dele ao levantar a cada manhã, a disposição para viver mais um dia, tudo isso a convencia de dar a ele mais uma chance.

Ela nunca havia visto alma tão pura quanto aquela.

O lobo que deveria levá-lo choramingava por não poder cumprir com seu dever. Acalme-se, ela pedia a ele, em breve iremos levá-lo daqui. Mas o em breve nunca chegava. Ela não conseguia tocá-lo, não vendo o quanto ele amava viver.

Dia após dia, ele conquistava seus sonhos, amando ainda mais a honra de poder acordar respirando mais uma vez. Um amor tão sincero, em sua forma mais pura, que chamou a atenção da própria Morte.

Por que ele a ama tanto? Ela se questionava esperando uma resposta, percorrendo o mundo dos mortais com seu manto negro e o lobo ao seu encalço.

Ela o manteve vivo o quanto pôde, mas claro, tal ato não passaria despercebido. A própria Vida foi a encontro da Morte, um evento tão raro que não acontecia há milênios.

Acostumada com os sentimentos dos mortais, ao contrário da Morte que conhecia apenas seus lamentos e suas dores eternas, a Vida logo conseguiu ler a face da Morte, e se assustou com o que viu.

Nunca pensei que isso seria possível. Ela disse. Nunca pensei que criaturas como nós pudéssemos ter sentimentos humanos.

O que quer dizer com isso? A Morte a questionou, pois os únicos sentimentos humanos que realmente conhecia e entendia eram a tristeza, a agonia, o ódio e o rancor, e ainda assim ela própria nunca sentiu nenhum deles.

Está apaixonada por ele. Tão apaixonada, que não se importa em mantê-lo longe de seus braços se isso significa que ele estará feliz. A Vida se comoveu, se encontrava admirada com isso. Jamais imaginou que o sentimento que os humanos julgavam ser tão poderoso, seria realmente tão forte a ponto de atravessar dimensões. Isso é belíssimo.

A Morte estava atônita. Afinal, aquilo era impossível.

Sabe que não deve ficar adiando isso, ele deve atravessar para o outro lado. Disse a Vida. Mas, isso aconteceu apenas uma vez em bilhões de anos de existência...

A Morte se entristeceu, sabendo que ele não estava pronto para isso, que ele queria viver mais do que todos aqueles que ela já havia buscado.

Um dos milhares pássaros feitos de luz pousou sobre o ombro da Vida, e ela sorriu de forma reconfortante para a morte.

Vá até ele, eu a darei um corpo humano. Ela disse, e segurou as mãos gélidas e pálidas da Morte. Mas, deverá retornar com ele.

A Morte se encheu de um sentimento estranho e desconhecido para ela. A felicidade.

O pássaro da Vida a envolveu com sua luz, e o que era vazio e escuridão se tornou ossos e carne.

Uma nova sensação tomou conta dela, um frio na barriga. Então é assim que os humanos se sentem, é assim que é estar apaixonada. Ela pensava, com a ansiedade que ela observava em tantas pessoas ao longe agora dentro de si. Então isso é estar viva.

O uivo de seus lobos e o uivo dos ventos se tornaram um só naquela noite. Até mesmo as estrelas pararam para observar aquele espetáculo.

Ninguém seria capaz de descrever aquilo, era tão belo que nem mesmo a visão mais afiada seria capaz de ver aquilo por completo, seria capaz de admirar cada um daqueles magníficos pequenos detalhes.

Ah sim, ninguém seria capaz de dizer o quão belo foi ver vida fluindo pela própria Morte.

E pela primeira vez em toda uma eternidade, um ser divino pôde ver nosso mundo com olhos humanos.

É lindo. A Morte pensou consigo, vendo o belo pássaro voando para longe, e a deixando ali em seu novo corpo mortal.

As luzes dos postes a fascinava, as ruas, as casas, tudo visto de uma nova forma em um novo ângulo.

Uma brisa passou por ela, que finalmente pôde entender o que era o frio, e seus fios de cabelo negro balançaram suavemente cheio de graça.

Ela olhou para o próprio corpo, coberto apenas por uma versão menos e mais simples de seu manto negro.

É por isso que ele a ama tanto. Ela pensou, admirando seu corpo, admirando cada articulação, cada batida de seu coração. Ela tocou a própria pele, sentindo a textura, totalmente diferente das almas que tocava.

Ela deu um passo a frente, pisando sem perceber em uma pequena pedra com seu pé descalço. Então isso é dor.

Ela ouviu buzinas e som dos motores. Pessoas passavam por ela, a encarando, algumas conversando alegremente, e outras com o rosto imóvel sem nenhum sorriso.

Eu estou viva. Ela pensou ao puxar ar para seus pulmões e sentir o gosto de sua saliva.

Naquela noite, a própria Morte se encontrava em êxtase pelas belezas da Vida.

Ela se sentia leve.

E como a luz da lua em meio a nuvens de chuva o sorriso dele surgiu em meio a multidão, iluminando a noite dela. E o que mais a chamou atenção era que em meio a tantas pessoas, aquele sorriso se dirigia apenas a ela.

Ali, dentre pessoas comuns vivendo normalmente, voltando cansadas de mais um dia de trabalho, foi ali onde a Morte soube o que significava a expressão de conter borboletas no estômago. E como se fizesse parte de seu novo instinto, ela sorriu de volta para ele.

As estrelas estavam em festa na escuridão do céu, na esperança de poder ver mais uma inesquecível história de amor.

Querida MorteOnde histórias criam vida. Descubra agora