Ela sentia suas bochechas queimarem conforme ele se aproximava, suave como uma brisa de verão.
- Precisa de ajuda? - ele a questionou, e ela não soube o que responder.
Ele a olhava com ternura, tentando entender o que ela fazia ali daquele jeito, coberta apenas por um pequeno manto negro.
Ele podia sentir os olhares maldosos de homens que passavam por ali, e retirou seu casaco para colocá-lo sobre ela.
- É perigoso aqui. - falou para ela, preocupado. - Onde é a sua casa? Precisa de ajuda para voltar?
Ela não sabia o que dizer, e quando tentou dizer alguma palavra, era como se fosse um pequeno bebê, que ainda não havia aprendido a falar. Ela entendia todas as línguas, mas nunca havia falado sequer uma palavra em qualquer uma delas, seu corpo humano ainda precisava aprender muitas coisas.
- Não consegue falar? - ele a questionou, depois de sua tentativa de tentar entender o que ela queria dizer. Ela balançou a cabeça negativamente, e a mente dele se esforçou para pensar em uma maneira de a ajudar.
Ele queria levá-la para longe daqueles olhares, mas estava receoso, pois ela não continha motivo algum para confiar nele. Para ela, ele poderia ser apenas um dos muitos homens que se divertiam a vendo naquele estado. Mas o que ele não sabia, era que ela conhecia a pureza em seu coração mais do que qualquer um.
- Você precisa de roupas. Ou vai congelar aqui. - ele disse, a vendo tremer.
Ele não sabia onde ela morava, e não podia simplesmente deixá-la ali. Sacou o celular, mandando uma mensagem para a irmã ir até a casa dele, imaginando que a garota se sentiria menos desconfortável na presença de outra mulher.
- Venha por aqui, vou arranjar roupas pra você. - ele disse gentilmente, colocando um braço ao redor dela sem tocá-la, e estendendo uma mão para mostrar o caminho.
Ela o acompanhou, sentindo seu coração bater mais rápido.
- Meu nome é Victor. - ele sorriu.
A Morte quis dizer a ele seu nome também, mas ela não possuía um.
Eles caminharam até um pequeno prédio, não muito longe de onde estavam antes. Uma garota parecida com ele estava sentada na portaria com uma sacola em uma das mãos e um capacete cinza em outra, usando roupas grandes e coloridas, e o cabelo negro levemente bagunçado caindo por sua pele morena.
- É bom que você tenha um bom motivo para ter me acordado. - ela disse, encarando Victor, e depois pousando os olhos na garota com ele, a analisando de cima a baixo. - Então foi por isso que me pediu que trouxesse roupas?
- Sim. - ele disse, rindo baixo ao ver a expressão cansada dela. - Encontrei ela quando estava voltando pra casa, ela parece perdida.
- Coloque ela dentro de casa logo, olha como ela está tremendo! - ela exclamou, e se virou para a Morte de modo acolhedor, com um pequeno sorriso nos lábios. - Eu sou a Lígia. Sou irmã dele.
A Morte não precisava dessas apresentações. Conhecia cada um deles muito bem, ela sabia que o dia de levar aquela garota também se aproximava. E sabia que ao contrário do irmão, Lígia ansiava por esse dia. Por trás daquele sorriso gentil e delicado, o que ela mais desejava era morrer.
Eles subiram escadas até o segundo andar, onde entraram na última porta ao final do corredor, era um apartamento simples e confortável.
- O banheiro é por aqui. - Lígia a disse, a levando até um pequeno cômodo e entregando um par de roupas.
Lá dentro ela finalmente pôde se ver por inteira, retirando o pequeno manto e o casaco que Victor havia colocado nela. Seu corpo era magro, nada curvilíneo. Se olhando no espelho viu seu cabelo negro e curto, e o rosto não a lembrava uma mulher ou um homem, apenas era delicado. Seus seios eram pequenos, quase inexistentes, não possuía mamilos ou uma genitália. Ela sorriu ao ver que a Vida havia pensado em cada detalhe. Se sentiu confortável naquele corpo.
Ela vestiu uma camiseta preta, estampada com gatinhos, e uma calça cor-de-rosa. Ficavam largas, mas ela se divertiu com isso.
Tudo nesse mundo, tudo visto dessa forma, tudo era incrível. A Morte se encontrava encantada com tudo o que via ao seu redor, inteiramente encantada com a visão humana.
Cada pequena coisa era totalmente diferente vista com olhos vivos.
Ah sim, com certeza dentre os cinco sentidos o que mais a deixou deslumbrada foi a visão.
- Seria bom levar ela em uma delegacia. A família deve estar procurando por ela. - ouviu Lígia dizer.
- Sim. Devem estar preocupados. - Victor concordou com ela. A Morte ouvia tudo atentamente, não apenas por querer saber o que estavam falando, mas também por estar se esforçando para eternizar em sua memória qual era a sensação de ouvir o mundo com ouvidos humanos.
Ela se olhou mais uma vez no espelho do banheiro, ainda não acreditando que aquele corpo pertencia a ela, mesmo que temporariamente.
- Pode fazer alguma coisa pra ela comer? - Victor pediu a Lígia.
- Por que você não faz? - ela questionou.
- Sabe que minha comida é horrível. Ela deve estar assustada, quero deixar ela confortável, e com certeza minha comida não vai fazer isso.
Lígia riu e se dirigiu a cozinha, que era separada da sala apenas por um sofá.
A Morte saiu do banheiro, observando melhor o lugar onde estava. As cores eram mais vibrantes. Ela não queria sair daquele corpo por nada, mas sabia que em algum momento deveria sair.
- Como você está? Está bem? - Victor a perguntou com um semblante preocupado. Ela assentiu com um sorriso, que o fez sorrir também.
Ela se sentou ao lado dele no sofá e analisou cada parte da decoração, pousando seus olhos em um pequeno retrato, onde cinco pessoas se encontravam. Todas sorriam. Duas delas estavam em pé, eram Victor e Lígia.
- Aqueles são meus irmãos mais novos. - ele disse apontando para as duas crianças no retrato, vendo que ela estava observando aquilo com atenção. Ela já sabia o nome de cada um deles, e que eles demorariam a se encontrar com ela. - A que está no meio segurando eles é a minha mãe.
Victor sorria ao falar sobre eles. O amor dele por aquela família era facilmente visto em seus olhos.
- Eles ainda não podem vir morar comigo. - continuou, com seu sorriso desaparecendo aos poucos. - Esse apartamento é muito pequeno pra cinco pessoas.
Como uma boa conhecedora da tristeza e da angústia, a Morte sabia que eram esses sentimentos que começaram a tomar conta do coração dele naquele instante.
- Quero tirar eles daquela favela logo. Eles merecem uma vida melhor do que a que eu tive.
A Morte admirou a fotografia mais uma vez, vendo o sorriso sincero naqueles rostos apesar de tudo.
- Se tudo der certo no estágio, vou conseguir um apartamento melhor. - ele murmurou pensativo, mas logo voltou sua atenção para ela. - E você, faz alguma coisa? Tem algum sonho?
Ela não soube o que responder, e ele soltou um riso nasalado consigo mesmo.
- Bom, poderíamos começar com o seu nome. - disse envergonhado por ter percebido que não sabia nem mesmo isso. Ela mordeu o lábio inferior, não sabendo o que responder. - Se não quiser dizer... Tudo bem.
Ele a encarou por alguns segundos, se perdendo na imensidão negra que eram os olhos dela. E a Morte, mais uma vez se perdeu naqueles olhos castanhos, levemente esverdeados próximos a pupila.
- É... Desculpe. - ele disse, desviando o olhar. - É que... Bem, os seus olhos, é como...
A Morte ainda o encarava, curiosa. Os lábios dele se curvaram em um pequeno sorriso mais uma vez.
- É como se eles fossem de outro mundo. - disse inerte em seus pensamentos, com medo de parecer rude.
Ela sentiu as batidas de seu coração se acelerarem, e as bochechas se esquentarem.
Na cozinha, Lígia franziu o cenho, tentando raciocinar se realmente fora isso que ela ouviu.
- Você é meio estranho, maninho. - ela falou, o deixando ainda mais envergonhado.
A Morte sorriu olhando para baixo, não sabendo como deveria reagir. Mas ela sabia que se sentia feliz.
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Querida Morte
Short StoryPor muitos, o amor é considerado o sentimento mais poderoso que existe. Ao menos, os humanos pensam assim. Algo inesperado aconteceu, e definitivamente isso entraria para a história, se não tivesse sido escondido a sete chaves. O amor ultrapassou to...