"Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos. ― O que aconteceu comigo? — pensou."
Franz Kafka - A Metamorfose
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Essa é uma análise literária escrita inteiramente para o público jovem, esses que em maioria não se interessam por literatura e muito menos pelo poder de questionar.
Gregor Samsa era um caixeiro-viajante que provinha o dinheiro de toda a família, visto que sua mãe, seu pai e sua irmã não trabalhavam. Além de ser o único que trabalhava, estava em sua responsabilidade pagar as dívidas que o negócio falido de seu pai deixara. Certa manhã, Gregor acorda ''metamorfoseado'' em um inseto (o livro não cita qual espécie de inseto é, mas podemos imaginá-lo como uma barata). Não demora para que a família perceba a situação do protagonista e comece a tratá-lo com repulsa, trancando-o no quarto e fornecendo lixo para saciar sua fome.
A metamorfose de Gregor é claramente metáfora ao papel do Homem na sociedade quando este para de prover algum benefício aos outros. Enquanto o protagonista trabalhava, era sempre tratado com ternura pelos membros da família, tendo seu quarto arrumado pela irmã com prazer e sua comida feita diariamente por parte da mãe. Quando ficou impossibilitado de trabalhar, não foi mais visto como útil, e seu papel dentro da família foi regredido a um contínuo sentimento de nojo. Ele se tornou um fardo.
Podemos dizer que sim, Kafka faz uma critica ao sistema capitalista. ''A metáfora apresenta, pois, a situação do homem que foi gradativamente perdendo contato com sua dimensão mais humana. No modo de produção pré-capitalista, o trabalhador é explorado, mas seu saber se mantém preservado, ele percebe claramente que seu trabalho é responsável pela produção, a alienação é apenas do corpo. No capitalismo industrial (e também no financeiro), a situação se modifica drasticamente.'' O Homem não passa mais a ser visto como ser vivo, e sim como uma máquina de benefícios, alienação que também afeta o próprio protagonista, visto que a primeira coisa que pensa quando acorda no corpo de um inseto é de que ''vai se atrasar para o trabalho''. Em síntese, alienado de seu trabalho e de sua humanidade, a alienação é total no capitalismo.
No contexto atual ainda é possível aplicar essa desumanização ao Homem. Poderíamos comparar com a modernidade líquida e dizer que as pessoas atualmente vêem os outros exatamente assim, mas não, é um pouco melhor (ainda). Essa desumanização se aplica melhor aos moradores de rua e as comunidades mais carentes. É cotidiano o sentimento de nojo que uma pessoa tem quando se depara com algum preto pedinte no semáforo. ''Ele deve feder, dê logo algumas moedas'', ''Feche a janela, o vagabundo tá chegando'', ''Aleluia, o sinal abriu''. Sinceramente, com quem estamos lidando? A sociedade os evita, como se os mesmos não fossem parte dessa sociedade.
Esse relacionamento capitalista também se aplica aos adolescentes, mas não com o dinheiro. O mais atrativo é o belo (mesmo assim, o tratamento exclusivo com quem tem mais dinheiro continua muito presente, até no mundo jovem). Quanto mais belo, mais ''pegável'', mais cheio de amigos e mais interessante é o indivíduo. O adolescente não deve esperar inteligência e sensibilidade de outro adolescente, visto que esses são fadados ao extremo podre da sociedade. O jovem é chato, monótomo, ignorante da vida e desinteressante aos olhos de todos, mas o adulto.. o adulto é a carniça final da cadeia alimentar - é o fungo responsável pela decomposição de todo o resto.
Kafka é conhecido principalmente por ''Metamorfose'', ''O processo'' e ''Carta ao pai'. É importante ressaltar que em todas essas obras, existe uma autoridade maior, uma autoridade que faz o protagonista sempre se sentir inferior. Em metamorfose, essa autoridade é o trabalho. Sem trabalho, nem o próprio Gregor encontra alguma utilidade em si mesmo. Ele não passa a história inteira julgado a atitude de sua família, muito pelo contrário: Gregor sonha que um dia ainda será capaz de voltar a trabalhar para colocar a irmã em uma escola de música. Ele adorava ouvir a irmã tocar violino, era uma de suas atividades favoritas. Amava tanto que essa foi uma das últimas coisas fez antes de morrer. Gregor morreu desidratado e com fome em seu próprio quarto, que já nem era mais seu quarto, se tornara um cômodo para jogar todos os objetos que não tivessem mais utilidade na casa. Ninguém chorou pela sua morte.
A impertinência de endeusar alguém mais poderoso continua sendo cotidiano no mundo. É isso o que o Homem faz com alguém que se encontra em momentos ruins - se afasta. Diz que está no seu direito, que a pessoa deve preferir ficar sozinha. Não, a verdade é que ninguém quer ajudar uma coisa que não seja o ''eu''.
''O homem é o mais necessitado de todos os seres: não tem mais do que vontade, desejos encarnados, um composto de mil necessidades. E assim vive na Terra, abandonado a si próprio, incerto de tudo que não seja a miséria e a necessidade que o oprime'' Schopenhauer, Dores do mundo.
Metamorfose é uma metáfora ao egocêntrismo humano e a alienação do trabalho. Ninguém precisa de um desempregado dentro de casa. Ninguém precisa de um fardo que não traz uma migalha de pão sobre a mesa. Nós somos o que produzimos e o que oferecemos, e não um conjunto de características e pensamentos. Essa é a desumanização em carne viva.
A todos que não leram metamorfose: dê uma chance a obra, deixe-a te mudar, enxergue um mundo novo e questione cada ser a sua volta. A literatura pode dar sentido à sua vida, ela pode te dar uma alma - coisa que o Homem atualmente anda desprovido. Quando uma aliança com a arte é colocada em seu dedo, sua vida se torna única, e essa aliança caminha com você por toda a infinidade do mundo, até mesmo depois de sua morte.
A Metamorfose é ''um soco no crânio que nos desperta [...], uma machadinha que rompe em nós o mar de gelo", nas palavras de Franz Kafka
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A Metamorfose: análise literária para adolescentes
RandomAnálise literária do livro ''A Metamorfose'' com contextualização ao mundo contemporâneo.