Londres, 5 de outubro de 1886;
Nome do(a) falecido(a): LEOMORD AMBROSE HUGHES;
Nome da mãe: DESCONHECIDO;
Data de nascimento: DESCONHECIDA;
Data de óbito: 5 DE OUTUBRO DE 1886
...
O dia 6 de outubro de 1886 amanhecera nublado, com a névoa típica inglesa. O Orvalho ainda caía sobre a relva verdejante dos jardins das casas das famílias ricas. Em contrapartida, as regiões mais pobres daquela cidade foram despertadas pela fumaça e ruído dos cascos dos cavalos que eram postos à frente das carroças de frutas, verduras, legumes e toda sorte de produto vegetal que era comercializado no subúrbio londrino.
Os moleques já estavam despertos às primeiras horas do dia, correndo de cá para lá e de lá para cá. Entretanto, não pense que corriam por diversão, pois ela era inexistente na vida das castas baixas do Reino Unido. Corriam, pois era o que lhes restava se quisessem sobrevier naquele mundo sombrio, cinzento e ignorado pela aristocracia. De fato, a vida não era fácil nesses locais povoados por bêbados, prostitutas, órfãos, ladrões, mendigos e outros pobres miseráveis; o ruído de motores e caldeiras era a trilha sonora de tais lugares, longe de qualquer resquício de "boa vida". Os adultos já estavam a resmungar e brigar entre si por razões corriqueiras.
Dentre os bairros pobres de Londres, cabe citar East End, famoso pela sua criminalidade e superpopulação. Mas, quem imaginaria que daquela estufa fétida, fumacenta e marcada, sairia um jovem de grandiosa sina."Corram, corram! Eles se aproximam!", disse o pivete trajado em vestes surradas que mais pareciam trapos do que roupas propriamente ditas.
Viela acima, rua abaixo, becos à esquerda, vamos, vamos!
Somos errantes, corramos por nossas vidas ou aqui, junto aos cães, morramos!As palavras desses versos descrevem bem a vida de William e sua trupe de pivetes, correndo de um policial aqui, de um mercador acolá. Era mais um pequeno furto efetuado com sucesso. Dessa vez, fora um saco de maçãs do velho Albert, um mercador de frutas da 6th Avenue. Semana passada, pães e leite da padaria da Srta. Hills; assim era a vida dos garotos: roubando para sobreviver, se escondendo para comer do fruto de seu labor.
"Cavalheiros, sejam bem vindos ao banquete do mestre William!", Bill, um dos integrantes da gangue, falou, tentando parecer um mordomo. Naquele buraco que chamavam de lar, onde outrora fora a casa de um casal de idosos que jaziam, viviam os garotos. Por sorte, nunca foram pegos nem seu lugar fora descoberto por militar algum. Ali, na presença do "mestre William", os meninos se deliciavam comendo as maçãs avermelhadas.
Ao todo, haviam cinco rapazotes no recinto, pois um morrera na semana retrasada: teve uma crise de asma em meio a uma das várias fulgas do grupo. Thomas era seu nome, um garoto gordo, de cabelos lambidos e bochechudo.
"Lembram-se do dia em que quase levamos uma surra dos Casacos Negros?", disse William, com pedaços de maçã na boca. "Se não fosse os cães do velho mendigo Dylan, estaríamos mortos, mortinhos!", acrescentou.
"Como eu sempre disse, o destino trabalha ao nosso favor.", retrucou o "mordomo" Bill, garoto magricela e que sempre utilizava uma boina marrom. William e os outros três concordaram com um aceno de cabeça.
"Haverá um dia em que vocês me verão voar. E tenho dito!". O menino Bill tinha o sonho de voar, mesmo sem saber como realizaria tal façanha. "É melhor ganhar um pouco mais de gordura antes, ou você será levado pelo vento antes mesmo de alçar voo." Retrucou William arrancando risadas de todos no recinto, inclusive do próprio Bill.
Apesar de toda a conversa em meio à refeição, os rapazes ouviram passos próximos à casa onde viviam. "Silêncio! Escutem, há passos do lado de fora.", sussurrou William para os demais que conversavam entre si; todos calaram. De súbito, um estrondo dominou todo o ambiente, arrancando poeira do chão, fazendo os que estavam imersos naquele local começarem a tossir, pois a porta de madeira velha caíra ao chão, fazendo, também, a luz solar penetrar naquele pequeno quarto. Graças ao ataque luminoso da luz contra seus olhos, a gangue enxergava pouca coisa, somando à irritação causada pelo pó erguido e pela perturbação sonora.
Em meio à confusão, dois homens saltaram para dentro do lugar, atravessando a soleira da porta, agora, mais arrebentada do que antes. Apesar do distúrbio irritadiço, os moleques se recuperaram e começaram a se movimentar. Com efeito, disparos tomaram o ambiente interno, e projéteis acertaram a todos os meninos, exceto Bill e William. Sem nada a fazer, só restou aos últimos fugirem daquele lugar de uma vez por todas, e foi o que fizeram, passando despercebidos pelos algozes enquanto a atenção deles estava voltada aos três pivetes agora caídos ao chão.
Correram como nunca, deixando os dois homens para trás, imersos em sentimento de missão cumprida, pois acreditavam terem exterminado o infortúnio da redondeza. Acontece que um homem de negócios de East End estava sendo afetado pelos furtos da gangue de William, pois muitos proprietários de pequenas lojas compravam-lhe as mercadorias a fim de revendê-las, e a fama dos moleques já chegara a seus ouvidos. Dessa maneira, enviou a dois de seus capachos para procurar os garotos e os expirar, findando, enfim, toda aquela perturbação. O mandante atendia pelo nome de Benjamim Geoffrey.
Bill e William fugiram até chegar em um local que sabiam que estavam a salvo de qualquer um que lhes desejassem mortos. Debaixo duma torre de fábrica se sentaram, para recuperar o fôlego e diminuir o enfado. "Mas que diabos! Perdemos Thomas numa semana e outras duas depois, Jefferson, Harry e James. Que faremos agora?", falou Bill quase que histérico, lamentando a morte de seus companheiros. É bem verdade que ele era mais jovem que William e, consequentemente, menos centrado. "Calma, Bill. Nós daremos um jeito de sobreviver. Compreendo seu pratear pelos nossos amigos, mas é melhor procurarmos algum lugar para ficar antes que a noite caia sobre nós", respondeu William tentando consolar seu colega. O local que estavam era um complexo de indústrias, com as paredes das fábricas oxidando graças à ação do tempo. A calçada e a rua eram de pedra, em que postes de iluminação se erguiam por sobre as cabeças dos que vagueavam por aquelas bandas.
Apesar das indústrias, o bairro em que Bill e William estavam agora inseridos era social, isto é, pobres e medianos conviviam em sociedade. Nos flancos direitos do lugar, haviam casas de operários, e logo na rua abaixo podia-se observar um local cotidiano: comércios, orfanatos, drogarias, praças, consultórios e etc.
Algumas horas após o ocorrido, a dupla estava abrigada numa praça qualquer, rezando a Deus para que passassem despercebidos. Entretanto, uma figura ocultada pela sombra das árvores aproximou-se deles: um indivíduo alto, bem-vestido, de bengala e cartola. "O que dois rapazes tão jovens fazem num lugar desses a essa hora da noite?", disse o homem, tirando a cartola e revelando um rosto de belas feições com um sorriso e olhar soturno.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Odisseia Inglesa.
Mystery / ThrillerA histórica Inglaterra do séc. XIX é epicentro das façanhas de William e Bill, dois garotos de rua que vivem de furtar alimentos para sobreviver junto de sua trupe. Entretanto, um acontecimento inesperado torna-se objeto de desencadeamento de uma tr...