Liv II, Cap III, Part 359c à 360d.

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- Perceberíamos melhor que quem pratica a justiça só a pratica de má vontade, por incapacidade de cometer injustiça, se imaginássemos algo como isso... Deixaríamos que aos dois, ao justo e ao injusto, fosse permitido fazer o que quisessem; depois iríamos atrás deles observando para onde a paixão conduziria cada um. Em flagrante apanharíamos o homem justo a buscar o mesmo alvo que o injusto, por causa da ambição de possuir sempre mais, ambição que toda a natureza busca como um bem e da qual, à força, a lei a desvia para levá-la ao respeito da equidade. A permissão de que falo seria mais ou menos a que teriam, se tivessem o poder que, segundo dizem, teve um dia Giges¹, antepassado do lídio. Ele era um pastor que servia o então governante da Lídia. Tendo havido grande chuva e terremoto, o solo rachou e formou-se uma grande fenda no local onde Giges pastoreava. Espantado com o espetáculo, desceu e viu, além de outras coisas espantosas que o mito menciona, um cavalo de bronze que era oco e tinha pequenas portas. Espiando através delas, viu lá dentro um cadáver cujo tamanho, ao que parecia, era maior que o de um ser humano e estava nu, mas tinha na mão um anel de ouro. Ele pegou o anel e foi embora. Quando houve a assembléia habitual dos pastores para que dessem ao rei as notícias relativas ao rebanho, para lá foi ele com seu anel. Então, quando estava sentado junto com os outros, aconteceu que ele fez o engaste do anel girar, passando-o do lado de fora para a palma de sua mão. Feito isso, Giges ficou invisível para os que que estavam a seu lado e dele falavam como se não estivesse mais lá. Ficou espantado e, de novo, tocando o anel, girou o engaste para o lado de fora e, depois de girá-lo, tornou-se visível. Notando isso, tentou ver se era o anel que tinha esse poder, e o que lhe aconteceu foi que, se ele girava o e gaste para a palma da mão, ficava invisível, se para o lado de fora, visível. Tendo percebido isso, imediatamente tratou de ser um dos mensageiros que iriam até o rei. Lá chegando, seduziu a mulher do rei e junto com ela atacou-o e, depois de matá-lo, assumiu o governo. Se, portanto, houvesse dois anéis como esse e um deles o homem justo colocasse em seu dedo, e o outro o injusto, não haveria ninguém tão pertinaz que perseverasse na justiça e tão resistente que se mantivesse longe dos bens alheios e nele não tocasse, estando livre para, sem nada temer, tomar o que quisesse no mercado, entrar nas casas e aí conviver com quem quisesse, matar e livrar dos grilhões quem quisesse e fazer tudo o mais, já que, entre os homens, seria igual a um deus. Agindo assim, nada faria de diferente do outro, mas, ao contrário, ambos percorreriam o mesmo caminho. Ora, diria alguém, isso é indício que ninguém é justo de bom grado, mas sob coerção, já que para ele pessoalmente isso não é um bem, já que cada um, quando crê que será capaz de cometer injustiça, comete. Todo homem crê, no que está certo, aliás, que para ele pessoalmente a injustiça traz mais vantagem que a justiça, como dirá quem defende essa posição. É que se alguém, de posse dessa permissão, não quisesse jamais cometer um ato injusto nem tocar nos bens alheios, os que disso disso se apercebessem o teriam como muito infeliz e insensato, mas o elogiariam diante dos outros, enganando-se mutuamente por medo de sofrer injustiça. É assim que isso acontece.

Giges¹: O advento de Giges, fundador da dinastia Lídia dos Mermnadas, é narrado por Heródoto (I, 7-14) sem mencionar o anel.

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