Liv VI, Cap IV, Part 488a à 489a

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— Bem! Falei. Brincas comigo jogando-me numa questão tão difícil de demonstrar... Ouve, portanto, a comparação que vou fazer para que vejas como a construo minuciosamente. A experiência pela qual, nas cidades, passam os mais sábios é tão dura que não existe nenhuma outra semelhante e é necessário, ao fazer uma comparação e falar em defesa deles, que se faça uma composição de traços tal como os pintores desenham bodes-cervos e seres mistos como esses². Imagina que algo como isto acontece a respeito de uma frota ou a um único navio! Um dono do navio³ que, em tamanho e robustez, é superior a todos os que estão no navio, mas um tanto surdo e também de vista curta, conhecimentos de arte náutica são também curtos; marinheiros em dissensão uns com os outros a respeito da pilotagem, cada um julgando quem é ele quem deve pilotar, embora jamais tenha aprendido essa arte nem seja capaz de apontar quem foi seu mestre nem quando a aprendeu, afirmando, além do mais, que ela não é coisa que possa ser ensinada. Eles continuamente cercam o dono do navio com exigências, tudo fazendo para que eles lhe entregue o timão e, às vezes, não conseguindo persuadi-lo, mas outros sim, uns ou matando outros ou jogando-me fora do navio, imobilizam o bom do dono do navio com a mandrágora ⁴, com a embriaguez ou com outro meio qualquer, comandam o navio, tomam posse da carga e, bebendo e banqueteando-se, como se pode esperar deles, vão navegando... Além disso, elogiam, tratam como marinheiro, como piloto e como merecedor da arte náutica quem é capaz de contribuir para que obtenham o comando, seja persuadindo o dono do navio ou exercendo violência sobre ele, mas ao que não é capaz disso censuram como imprestável. A respeito do autêntico piloto, nem querem ouvir que forçosamente ele deve preocupar-se com ciclos do tempo, estações, céu, astros, ventos e com tudo o mais que diz respeito à arte, caso realmente queira chegar a ficar à altura de um comandante de navio. Quanto a como irá pilotar, com ou sem a permissão de alguns, julgam que não lhes será possível conseguir essa arte e prática [e ao mesmo tempo a arte da pilotagem]⁵.

Que se faça uma composição de traços tal como os pintores desenham bodes-cervos e seres mistos como esses²: A metáfora básica da nau/cidade se desenvolve num quadro em que se inserem as comparações subsidiárias: dono do barco/povo; marinheiros/políticos; piloto/governante; desordens/lutas pelo poder, corrupção.

Dono do navio³: armador, dono do navio mercante que transporta carga que lhe pertence.

Mandrágora⁴: erva tóxica (mandragora officinarum) usada em feitiçarias.

[E ao mesmo tempo a arte da pilotagem]⁵: A expressão entre colchetes, segundo E. Chsmbry (Cf. La République, Belles Lettres), talvez seja uma glosa inserida no texto.

Contos e analogias da República de PlatãoOnde histórias criam vida. Descubra agora