Por mil anos ❤❤ #capítulo 1

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Todas as histórias começam por "era uma vez". Esta não tem esse começo porque ainda é presente.

Para muitas pessoas sou apenas um velho, que vive numa casa antiga com a sua esposa. Um velho sem sonhos. Apenas com histórias velhas e antigas para contar aos netos enquanto fico a tomar conta deles.

São sete da manhã, está frio lá fora. Percebo isso enquanto olho pela janela e vejo as árvores abanar por causa do vento. Consigo ver algumas enfermeiras, contratadas pelos meus filhos para que a nossa segurança seja garantida, a chegar perto do portão. Seguro-me às beiras da cama e faço um enorme esforço para me levantar. Visto-me e pego em três livros. Ando sempre com eles. São uma espécie de diário.

Dirijo-me até à sala de estar, que se encontra vazia. . Olho para todos os lados, para ver se tem alguma enfermeira. Quando me apercebo que não, pego na chave do quarto ao lado. Quando lá chego, abro cuidadosamente a porta e sinto-me finalmente em casa. Apenas pela pessoa que lá se encontra.

Olho para a janela e reparo que os estores ainda estão fechados. Entro lentamente e sento-me na cadeira mais próxima da cama. Pouso os livros na mesinha de cabeceira e pego na mão dela. Sorrio ali no escuro, sem mais ninguém a não ser nós, onde posso ser feliz sem ninguém estragar essa felicidade.

Porém, cai-me uma lágrima. Não existe mulher mais bonita que a minha. O cabelo dela, agora curto pelo ombros devido à mudança dos seus gostos, tem um tom dourado como nunca tinha visto. Os seus olhos, agora pálidos devido à idade, têm um castanho avelã. E a sua pele, agora rugosa devido ao passar do tempo, tem um brilho inconfundível.

Limpo a lágrima, tiro o sorriso do rosto. Levo a mão dela junto à minha boca e beijo-a suavemente. Depois digo "bom dia mulher".

Ela abre os olhos, não se lembra de quem sou. Fico em desespero e corro a chamar uma enfermeira.

Após cinco horas de espera, ela chega a casa. Estive sentado durante esse tempo todo, agarrado a uma fotografia nossa, na esperança que fossem apenas os sinais da velhice.

Mal a ouvi chegar, corri o mais rápido que as minhas pernas permitiam. Duas enfermeiras agarraram-me pelos braços e não me deixaram passar.

- Sente-se por favor - disseram elas

Eu não me queria sentar, queria ir ter com ela e ter aqueles passeios que tínhamos, queria ouvir as histórias dela e ouvi-la cantar.

- Temos más notícias - continuaram - a sua mulher tem Alzheimer. Ela precisa de ...

Bastou-me ouvir a palavra Alzheimer e esqueci tudo o resto. Que iriam dizer os nossos filhos, os nossos netos quando chegarem à beira dela e ela não souber quem eles são...

- Isto é temporário não é?! - perguntei entre soluços, enquanto me levantava

- Infelizmente não. Os médicos disseram que já é um estado avançado. Ela apenas se lembra do dia, enquanto dorme, esquece tudo. No dia seguinte, já não se lembra de nada.

Não me deixaram estar mais tempo com ela naquele dia. Nem no seguinte, nem no outro, nem no outro a seguir. Sentia-me vazio. Não comia nada. Ficava o dia todo no quarto a ler os diários ou apenas a olhar pela janela à espera de acordar daquele pesadelo. Uma ou outra vez ainda ganhava coragem e ia à gaveta das fotos, pegava na nossa primeira foto, e via os sorrisos, éramos tão novos! Depois na do casamento, a nossa alegria lá estampada na fotografia. Lembro-me que tinha sido tirada enquanto abríamos o baile. Depois chorava, chorava e chorava até não ter mais lágrimas dentro de mim. Nunca dormia mais de duas horas devido aos pesadelos sempre presentes.

A nossa filha chorava sempre que aqui vinha, não podia estar com a mãe. O meu filho já nem aparecia. Talvez por estar ocupado ou simplesmente por não querer sofrer. Não o culpo disso. E os nossos netos, sei como a Maria sofreu com a notícia. Foi a que mais percebeu o que se estava a passar. Talvez por ser a mais velha, já tem os seus catorze anos feitos, é o orgulho do avô. O João também ficou triste mas não ligou muito. Tão inocente aquela criança, apenas com seis anos feitos. Os meus outros netos não sei como reagiram. Mas ia doer bastante vê-los a sofrer.

Nos dias seguintes continuei fechado no quarto, sem comer. As enfermeiras estavam seriamente preocupadas comigo. Diziam que eu podia morrer. Eu pensava "Já morri. Não em corpo mas morri em alma quando deixaram de me deixar de ver a minha mulher" . Elas chamaram-lhe morte ambígua, ou seja, sofremos a perda de uma pessoa mas ela ainda lá está, apenas com outro comportamento.

Corri muito depressa, ultrapassando o que as minhas pernas podiam. Comecei a pensar que não passava de um velho comum, sem cair morto e sem ter uma velhice feliz. Pensei desistir. Mas lembrei-me da razão pela qual tinha sido feliz durante tanto tempo.

Quando cheguei ao quarto fiz exatamente o que costumava fazer. Entrada lenta e cuidadosa, sentar perto da cama, pousar os diários e pegar na mão dela enquanto a beijava. Tive medo que ela acordasse. Acabei por adormecer. Ninguém pode julgar um velho que já tem oitenta anos.

Mais tarde, meia hora talvez, ouvi passos. Fiquei branco com medo mas ninguém entrou. Ela acordou, e perguntou quem eu era. Eu respondi-lhe que era o seu marido. Ela começou a chorar e a entrar em pânico. Chamei uma enfermeira. Depois de a acalmar, ela esteve a falar comigo e prometeu ajudar-me. Talvez por isso que não tinha perdido a esperança. Ela também me disse que ela começaria a reconhecer a minha cara apesar de não me lembrar quem eu sou.

A minha rotina tinha mudado. Tinha voltado a comer e a estar bem dentro da idade que tenho. Estava com ela todos os dias não como marido e mulher mas sim como paciente e um velho que a confortava todas as manhãs.


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