Eram, mais uma vez, duas horas da madrugada. E mais uma vez eu tinha uma taça de vinho em meu dedos. Estava eu na sacada olhando a lua brilhante no céu e implorando, mais uma vez, que me deixasse viver lá em cima com ela longe de toda a imundície humana. E pela primeira vez eu deixei com que o foco de meus olhos se deslocasse do nosso brilhante satélite natural para baixo do vigésimo primeiro andar. Quando olhamos por tempo demais para o abismo, ele olha de volta para você, foi algo assim que Nietzsche escreveu e por isso eu me proibia tanto de olhar para algo além do céu enquanto estava na sacada. Por isso é porque eu já me sentia caindo vinte e quatro horas por dia. Por isso e porque eu não confiava em mim mesmo. Por isso e porque eu caía a tanto tempo que seria muito fácil acabar concluindo que estar no abismo seria mais convidativo do que continuar caindo. Nunca achei que eu poderia odiar tanto o gerúndio quanto no atual momento. E o abismo com seu corpo curvilíneo nunca me pareceu tão sedutor. Eu estava tão perdido no meu gerúndio de cair que quase não percebi a gargalhada seca que saiu daquilo que era eu, mas eu conhecia menos do que um desconhecido. E minha alma já era quase toda tomada de escuridão. Eu quase já não tinha vida. Meus olhos quase não brilhavam mais. Quase pode não ser nada e pode ser tudo. Quase pode ser como um café depois de uma madrugada não dormida que te mantem acordado. E nessa história de quase's algo quase passou despercebidos pelos meus olhos turvos de escuridão. Algo não. Alguém. Drummond que me perdoe por algumas mudanças, mas acontece que nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minha retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do mar seco de areia tinha uma pessoa. Tinha uma pessoa no meio da areia. No meio da escuridão da madrugada e de meus olhos turvos tinha uma pessoa. Não que haver uma pessoa no meio da praia seria um grande evento digno do foco da minha visão, mas é quando se são mais do que duas horas da madrugada em uma cidade tão conhecida por sua violência durante o escuro da noite. A pessoa estava sozinha, duas horas da madrugada, no meio da praia, em frente ao meu apartamento, no vigésimo primeiro andar. Da minha distância tudo o que minha miopia me permitia ver era cabelos longos que balançavam ao vento congelante como o que se fazia presente naquela madrugada. Será que a pessoa era turista e portanto não estava familiarizada com a fama de violência que nossas madrugadas tinham? Sendo ou não ela precisava sair dali, pois se não fosse vítima de alguém com certeza seria da temperatura negativa que tínhamos. Eu pensei seriamente por uns cinco minutos se eu realmente iria fazer aquilo. Eu que na maior parte do tempo me mantinha afastado das pessoas por vários motivos. Eu não sabia muito lidar com elas, muito menos interagir. Além de ser visto fora de todos os padrões possíveis fazendo com que uma boa parte das pessoas não fossem nada receptivas. Então por eu não poder adivinhar quem seria e quem não seria preferia me manter afastado o máximo que fosse possível. De qualquer forma, ao findar os cinco minutos eu estava caminhando em direção a porta de saída do apartamento.
– É perigoso estar em meio a madrugada fria na praia. E o maior perigo não está no frio – eu disse enquanto me sentava ao seu lado na areia e voltava a olhar a lua.
– eu sei – foi sua única resposta.
Bom, eu então não tinha mais nada a fazer. Apesar disso não levantei e fui embora. Apesar do frio que me paralisava a lua estava tão mais linda aqui fora, o que não fazia o menor sentido. Era a mesma lua da minha sacada.
– Não há maior perigo para mim do que eu – sua voz era rouca e numa altura que se juntava a orquestra ventamar.
Eu entendia aquela frase, de verdade.
– Bom, pelo menos estando dentro de casa se tem o benefício de não congelar – sorri.
– Mas a lua vista de dentro de casa não é a mesma vista daqui de fora.
– Por quê? – perguntei tão rápido que creio que foi antes meso do término de sua oração.
– Não me entenda mal. A lua é a mesma, nós é que não somos. De dentro de casas só vemos a lua com nossos olhos – franzi minha testa e meu nariz – aqui fora a vemos com todo nosso corpo. O frio congelante que nos paralisa, a iluminação natural da noite, o som do mar. Tudo isso muda a forma como enxergamos a lua.
Eu nada disse pois eu não tinha nada a dizer, só a pensar.
– Seus olhos são como a lua apesar de brilharem por si mesmo – ouvi o som da sua voz depois de minutos de silêncio.
Eu olhei em sua direção e pude entender a segunda frase que eu ouvi de sua boca. Seu eu estava tão acabado quanto o meu. Quando olhava em seus olhos eu podia me ver de certa forma, e não estou falando do meu reflexo. Olhando para seus olhos eu pude entender também a última frase que ouvi de sua boca. Porque seus olhos também eram como lua. Apesar disso havia um abismo lá também. Um vazio. Oco. Nada. Vácuo. Mas o que é o espaço senão isso? Era justo que onde houvesse algo como a lua houvesse também algo como o abismo. Eu sorri.
– Eu vou para casa agora, só vim avisar sobre o perigo da madrugada mesmo – disse me levantando e passando minhas mãos pelas minhas pernas tentando tirar os grãos de areia – se precisar me achar é o prédio da frente, vigésimo primeiro andar, apartamento cento e onze – eu disse tento a certeza de que eu precisava de mais minutos de conversas do que esse, de mais encontros. Olhei para seus olhos sorrindo e tirei meu casaco – fique com isso e se mantenha quente.
– Sabe – falou enquanto vestia meu casaco – quando olhamos por tempo demais para a lua, é natural que ela olhe de volta para você. Mas ela não pode te alcançar dentro do conforto de casa, precisa estar na casa dela para se fazer perceptível. E sobre ir para casa, bom, o universo é minha casa, apesar de eu ter um carinho maior pela lua.
Eu sorri e me virei andando para casa, mas depois de longos cinco passos me virei novamente de encontro a seus olhos que me fitavam ainda.
– A propósito, sou Jonas.
– Eu sou Luan – me respondeu sorrindo.
Eu sorri também e fui embora esperançoso pois agora não temia tanto o abismo, na verdade eu queria vê-lo novamente. Eu precisava encontrá-lo.
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Encontros
ContoTalvez uma história de amor, talvez de dor. Talvez um encontro de almas, talvez de abismos. De qualquer forma a lua nunca se esquecerá desse acontecimento na vida de suas retinas tão fatigadas. "Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo ol...